Thursday, June 30, 2005
Já nenhum barco de papel ressuscita o lago da minha infância
Já nenhum barco de papel ressuscita o lago da tua infância
e contudo a luz espalha no ar centelhas coloridas
as nuvens subitamente alaranjadas, rubras e ouro
esparsas como um sonho real ao entardecer em Maio.
Sobre as silhuetas distorcidas e vagas
da minha, da tua, da nossa angústia
o sol ergue o seu grito vermelho, tenso e alacre
como tudo o que nasce
depois de uma longa e necessária gestação.
Será preciso escutar o silêncio
o frémito dos sinais
que se desprendem das trémulas asas do instante
e recolher assim balbuciantes e imprecisos
esses signos de uma linguagem nova.
Adormecer no calor de antigas memórias
aspirar perfumes esquecidos
no mais profundo âmago das coisas
sorver toda a luz
e esboçar com mãos seguras gestos musicais.
Só então, absorto no espanto de descobertas recentes
verás, indiferente à tua surpresa maravilhada,
recortar-se nítido sobre o lago azul da tua infância
um barco de papel.
(Obrigado, Maria João, pelo teu poema)
Já nenhum barco de papel ressuscita o lago da tua infância
e contudo a luz espalha no ar centelhas coloridas
as nuvens subitamente alaranjadas, rubras e ouro
esparsas como um sonho real ao entardecer em Maio.
Sobre as silhuetas distorcidas e vagas
da minha, da tua, da nossa angústia
o sol ergue o seu grito vermelho, tenso e alacre
como tudo o que nasce
depois de uma longa e necessária gestação.
Será preciso escutar o silêncio
o frémito dos sinais
que se desprendem das trémulas asas do instante
e recolher assim balbuciantes e imprecisos
esses signos de uma linguagem nova.
Adormecer no calor de antigas memórias
aspirar perfumes esquecidos
no mais profundo âmago das coisas
sorver toda a luz
e esboçar com mãos seguras gestos musicais.
Só então, absorto no espanto de descobertas recentes
verás, indiferente à tua surpresa maravilhada,
recortar-se nítido sobre o lago azul da tua infância
um barco de papel.
(Obrigado, Maria João, pelo teu poema)
Monday, June 27, 2005
A BOLA e a língua portuguesa
Em 16 de Abril de 2005, o director de A BOLA, Vítor Serpa, escreveu um editorial que me mereceu especial atenção. Guardei o texto e só agora tive disponibilidade para uma segunda leitura. Uma «peça» brilhante, muito bem escrita, mas com a qual não concordo inteiramente, na parte em que fala da «defesa e expansão da língua portuguesa». Aqui reproduzo o editorial do director de ABOLA e, a seguir, o meu comentário:
O Presidente da República, Jorge Sampaio, lançou em Paris um desafio importante pela defesa e expansão da língua portuguesa. Fê-lo numa visita que fica também assinalada por um notável discurso na Assembleia Nacional francesa, que Sampaio tão bem celebrou como um local de culto da democracia europeia, onde algumas gerações de portugueses, inconformadas com a ditadura, beberam os princípios fundamentais da liberdade e da solidariedade social.
Os dois temas que o Presidente da República entendeu consagrar como centrais na sua visita a França são, pois, temas que muito dizem a este jornal.
Fundada em 1945, no fim de uma guerra que arrasou parte da Europa, e em pleno regime de ditadura, A BOLA tornou-se, desde o início, um jornal de liberdade e palco da diversidade de opiniões, mesmo nos tempos da censura. Ainda hoje A BOLA assegura e promove esses princípios de inteira liberdade de opinião. Por vezes com custos elevados pela injustificada incompreensão dos que se sentem atingidos por críticas incómodas; outras vezes, também, devemos assumir essa culpa, pela legítima indignação de quem é alvo da utilização abusiva dessa liberdade, aproveitando-a para transpor as fronteiras do respeito individual.
Nenhum custo, porém, é demasiado elevado para suportar a democracia e o direito à opinião diversa. Por vezes os próprios leitores nos interrogam, em cartas, em mails, pelo telefone ou de viva voz, sobre se não seria mais fácil, e até confortável para o jornal, institucionalizar a sua opinião dando um cariz mais oficial e coerente aos textos publicados.
Seria mais fácil, sim, sobretudo mais confortável; mas não seria tão abrangente nem garantiria uma tribuna tão livre e, por isso, tão digna da história deste jornal e da sua velha militância pela democracia e pela diferença de opinião, o que não pode ser sinónimo de direito à ofensa dos elementares valores de cidadania.
Dito isto, que já andava para ser dito há algum tempo, se chega ao segundo tema que Sampaio abordou em França: o da defesa e expansão da língua portuguesa.
Significativamente, Sampaio lançou esse desafio em Paris, cidade de liberdade, de diversidade cultural e, também, capital europeia da emigração portuguesa, onde A BOLA se mantém como uma instituição especial na divulgação da nossa língua.
Bem sabemos que não é a única mas temos orgulho em dizer que A BOLA, ao longo de tantas gerações de jornalistas, tem sido o principal veículo da imprensa portuguesa na divulgação e defesa da língua.
Vem de trás o mérito mas é legítimo que se diga que tem sido continuado. Ainda recentemente A BOLA fazia eco da enorme ansiedade goesa, perdida na lonjura dos oceanos, de vir a ter em Goa e em Damão um instituto de ensino do português.
Na Europa, em África, na América, na Ásia e na Oceânia, A BOLA tem persistido, por décadas, na defesa da língua e da cultura nacionais. Continuamos a chegar a dezenas de milhar de portugueses e de cidadãos que falam português em todos os cantos do Mundo, mesmo depois de um governo já supostamente democrático ter decidido acabar com o subsídio de transporte dos jornais, fazendo terminar laços de relação directa de muitos milhares de portugueses com a sua língua escrita.
Poucos foram os que se importaram. Pudera! A BOLA era o único jornal que era escolhido em número significativo pelas comunidades de portugueses no Mundo. Sempre dissemos que, para nós, a questão não era a do negócio, que era de volume pouco ou nada significativo, mas sim de contributo essencial pela defesa e expansão da língua.
Julgo, sinceramente, que nós, em A BOLA, não apenas pela actual geração, que tem mantido um compromisso de décadas, mas em nome de gerações anteriores, temos o direito de nos sentir magoados com a injusta desatenção dos políticos em relação a essa obra feita. Mas o Presidente Jorge Sampaio sabe bem que seremos seu aliado nesse desafio e nunca desistiremos de fazer um jornal muito para lá de Portugal.
Vítor Serpa (editorial de A BOLA, 16-4-2005)
NOTA – Não é a primeira vez que Vítor Serpa, director de A BOLA, aborda o tema «defesa e expansão da língua portuguesa». Em tempos, ouvi-o esgrimir argumentos semelhantes, salvo erro num programa da RTP internacional. Tem razão: A BOLA «tem sido o principal veículo da imprensa portuguesa na divulgação e defesa da língua». Lamentável, portanto, que «um governo supostamente democrático» tenha decidido «acabar com o subsídio de transporte dos jornais, fazendo terminar laços de relação directa de muitos milhares de portugueses com a sua língua escrita».
Vamos por partes… É lamentável a decisão do tal «governo supostamente democrático», mas é bom não esquecer que A BOLA continua a chegar a «dezenas de milhar de portugueses e de cidadãos que falam português em todos os cantos do Mundo». Como? Através da Internet, naturalmente!
Pelo que julgo saber, Vítor Serpa nunca morreu de amores pela versão on-line de A BOLA. Lá terá as suas razões… Mas já não é possível ignorar esta «arma» poderosíssima que chega hora a hora, minuto a minuto, a «todos os cantos do Mundo». Os tempos são outros, como diria (noutros tempos…) Bob Dylan.
Segundo um estudo recente, em França, os jornais com edição on-line têm maior notoriedade junto dos leitores e… vendem mais. Não sei se será assim – sei que a edição on-line é lida por «muitas dezenas de milhar de portugueses e de cidadãos que falam português em todos os cantos do Mundo».
Pode e deve questionar-se a qualidade das edições on-line (todas elas...). Mas será possível exigir mais de meia dúzia de «operadores de conteúdos», em comparação com dezenas e dezenas de «jornalistas», com muito mais tempo e outros meios?
A propósito de qualidade da escrita. Sempre houve quem dominasse a língua e quem a tratasse a pontapé, quem se exprimisse correctamente e quem não debitasse senão asneira ou «palha». Mas isto passa-se no on-line e nas versões impressas... Há «excesso de juventude» nas redacções? Talvez... Porque quiseram, então, acabar com as revisões? (bem sei que nalguns jornais fizeram marcha-atrás...)
Remeto os leitores para um dos posts anteriores («Requiem pela língua portuguesa») e termino assim: não chega teorizar a favor da língua portuguesa – é forçoso fazer algo mais em defesa da mesma.
Manuel Sequeira
Em 16 de Abril de 2005, o director de A BOLA, Vítor Serpa, escreveu um editorial que me mereceu especial atenção. Guardei o texto e só agora tive disponibilidade para uma segunda leitura. Uma «peça» brilhante, muito bem escrita, mas com a qual não concordo inteiramente, na parte em que fala da «defesa e expansão da língua portuguesa». Aqui reproduzo o editorial do director de ABOLA e, a seguir, o meu comentário:
O Presidente da República, Jorge Sampaio, lançou em Paris um desafio importante pela defesa e expansão da língua portuguesa. Fê-lo numa visita que fica também assinalada por um notável discurso na Assembleia Nacional francesa, que Sampaio tão bem celebrou como um local de culto da democracia europeia, onde algumas gerações de portugueses, inconformadas com a ditadura, beberam os princípios fundamentais da liberdade e da solidariedade social.
Os dois temas que o Presidente da República entendeu consagrar como centrais na sua visita a França são, pois, temas que muito dizem a este jornal.
Fundada em 1945, no fim de uma guerra que arrasou parte da Europa, e em pleno regime de ditadura, A BOLA tornou-se, desde o início, um jornal de liberdade e palco da diversidade de opiniões, mesmo nos tempos da censura. Ainda hoje A BOLA assegura e promove esses princípios de inteira liberdade de opinião. Por vezes com custos elevados pela injustificada incompreensão dos que se sentem atingidos por críticas incómodas; outras vezes, também, devemos assumir essa culpa, pela legítima indignação de quem é alvo da utilização abusiva dessa liberdade, aproveitando-a para transpor as fronteiras do respeito individual.
Nenhum custo, porém, é demasiado elevado para suportar a democracia e o direito à opinião diversa. Por vezes os próprios leitores nos interrogam, em cartas, em mails, pelo telefone ou de viva voz, sobre se não seria mais fácil, e até confortável para o jornal, institucionalizar a sua opinião dando um cariz mais oficial e coerente aos textos publicados.
Seria mais fácil, sim, sobretudo mais confortável; mas não seria tão abrangente nem garantiria uma tribuna tão livre e, por isso, tão digna da história deste jornal e da sua velha militância pela democracia e pela diferença de opinião, o que não pode ser sinónimo de direito à ofensa dos elementares valores de cidadania.
Dito isto, que já andava para ser dito há algum tempo, se chega ao segundo tema que Sampaio abordou em França: o da defesa e expansão da língua portuguesa.
Significativamente, Sampaio lançou esse desafio em Paris, cidade de liberdade, de diversidade cultural e, também, capital europeia da emigração portuguesa, onde A BOLA se mantém como uma instituição especial na divulgação da nossa língua.
Bem sabemos que não é a única mas temos orgulho em dizer que A BOLA, ao longo de tantas gerações de jornalistas, tem sido o principal veículo da imprensa portuguesa na divulgação e defesa da língua.
Vem de trás o mérito mas é legítimo que se diga que tem sido continuado. Ainda recentemente A BOLA fazia eco da enorme ansiedade goesa, perdida na lonjura dos oceanos, de vir a ter em Goa e em Damão um instituto de ensino do português.
Na Europa, em África, na América, na Ásia e na Oceânia, A BOLA tem persistido, por décadas, na defesa da língua e da cultura nacionais. Continuamos a chegar a dezenas de milhar de portugueses e de cidadãos que falam português em todos os cantos do Mundo, mesmo depois de um governo já supostamente democrático ter decidido acabar com o subsídio de transporte dos jornais, fazendo terminar laços de relação directa de muitos milhares de portugueses com a sua língua escrita.
Poucos foram os que se importaram. Pudera! A BOLA era o único jornal que era escolhido em número significativo pelas comunidades de portugueses no Mundo. Sempre dissemos que, para nós, a questão não era a do negócio, que era de volume pouco ou nada significativo, mas sim de contributo essencial pela defesa e expansão da língua.
Julgo, sinceramente, que nós, em A BOLA, não apenas pela actual geração, que tem mantido um compromisso de décadas, mas em nome de gerações anteriores, temos o direito de nos sentir magoados com a injusta desatenção dos políticos em relação a essa obra feita. Mas o Presidente Jorge Sampaio sabe bem que seremos seu aliado nesse desafio e nunca desistiremos de fazer um jornal muito para lá de Portugal.
Vítor Serpa (editorial de A BOLA, 16-4-2005)
NOTA – Não é a primeira vez que Vítor Serpa, director de A BOLA, aborda o tema «defesa e expansão da língua portuguesa». Em tempos, ouvi-o esgrimir argumentos semelhantes, salvo erro num programa da RTP internacional. Tem razão: A BOLA «tem sido o principal veículo da imprensa portuguesa na divulgação e defesa da língua». Lamentável, portanto, que «um governo supostamente democrático» tenha decidido «acabar com o subsídio de transporte dos jornais, fazendo terminar laços de relação directa de muitos milhares de portugueses com a sua língua escrita».
Vamos por partes… É lamentável a decisão do tal «governo supostamente democrático», mas é bom não esquecer que A BOLA continua a chegar a «dezenas de milhar de portugueses e de cidadãos que falam português em todos os cantos do Mundo». Como? Através da Internet, naturalmente!
Pelo que julgo saber, Vítor Serpa nunca morreu de amores pela versão on-line de A BOLA. Lá terá as suas razões… Mas já não é possível ignorar esta «arma» poderosíssima que chega hora a hora, minuto a minuto, a «todos os cantos do Mundo». Os tempos são outros, como diria (noutros tempos…) Bob Dylan.
Segundo um estudo recente, em França, os jornais com edição on-line têm maior notoriedade junto dos leitores e… vendem mais. Não sei se será assim – sei que a edição on-line é lida por «muitas dezenas de milhar de portugueses e de cidadãos que falam português em todos os cantos do Mundo».
Pode e deve questionar-se a qualidade das edições on-line (todas elas...). Mas será possível exigir mais de meia dúzia de «operadores de conteúdos», em comparação com dezenas e dezenas de «jornalistas», com muito mais tempo e outros meios?
A propósito de qualidade da escrita. Sempre houve quem dominasse a língua e quem a tratasse a pontapé, quem se exprimisse correctamente e quem não debitasse senão asneira ou «palha». Mas isto passa-se no on-line e nas versões impressas... Há «excesso de juventude» nas redacções? Talvez... Porque quiseram, então, acabar com as revisões? (bem sei que nalguns jornais fizeram marcha-atrás...)
Remeto os leitores para um dos posts anteriores («Requiem pela língua portuguesa») e termino assim: não chega teorizar a favor da língua portuguesa – é forçoso fazer algo mais em defesa da mesma.
Manuel Sequeira
Saturday, June 25, 2005
«O Apóstolo da Desgraça»
Nos últimos tempos contactei de perto com a cultura africana e redescobri o prazer de ler estórias. Já conhecia Luandino, Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Agualusa, Mia Couto... Hoje não vou falar desses «monstros» da cultura africana, mas de um escritor moçambicano – Nélson Saúte. A leitura de «O Apóstolo da Desgraça» (Publicações D. Quixote) levou-me a redescobrir novos sons, novas cores... «A baliza desguarnecida de Sozinho Armando» é um dos contos do livro de Nélson Saúte que aqui reproduzo, com a devida vénia.
A baliza desguarnecida de Sozinho Armando
Sozinho Armando saiu do estádio superlotado de alegrias. Já descia o atalho que o levava do futebol, mas a multidão ainda lhe habitava, a claque vibrando em seus ouvidos. A imagem do jogador do Maxaquene ainda rematava na sua memória o golo da vitória. Era urgente comemorar. No bar O Bazuqueiro sentiu a sua multidão, aplaudindo a cerveja. Cada copo comemorava um golo. Lembrou-se da promessa à saída do estádio: hoje não vou bater na Esmeralda. Até lhe vou levar uma prenda, ela merece tal alegria.
De facto, ela merecia. Afinal, a paga dos seus sacrifícios eram pancadas, todos os dias, depois do encontro com os copos. Ela se encolhia nos seus choros, amparando os filhos para os proteger das sobras da porrada. Esmeralda ouvia os relatos, mesmo não gostando da bola. Queria saber se o Maxaquene ganhava ou não e assim adivinhava como seria a chegada do marido. Sozinho Armando descarregava nela a euforia das multidões. Debruçada sobre o Xirico, os rádios que o socialismo inundou no país, Esmeralda jogava à baliza do Maxaquene. O avançado adversário fuzilava o guarda-redes e ela levantava voo, os sonhos dela caíam sobre o parquet. Nessa tarde, ela também recebeu o troféu da vitória.
Entretanto, no bar O Bazuqueiro os copos vazavam-se na alegria de Sozinho Armando. Prenda! Para quê prenda?! Uma mulher não pode levar muito mimo, senão fica estragada.
Ele pensava na Esmeralda: será que ela ouvia o relato sozinha?! Como é que o vizinho, um gajo do Desportivo, sabia o que se passara no jogo mesmo sem ir ao estádio?! Ouvia na rádio?! Como, se ele não tinha rádio! Ou ouvia os relatos no Xirico familiar e ao colo exclusivo da Esmeralda?! A suspeita azedava mais que a cerveja. A alma embriagava-se mais de desconfiança que o álcool. Ele perguntava: será que a Esmeralda tinha coragem para fazer uma coisa dessas?! Mesmo com todas aquelas porradas que lhe dedicava, indubitáveis provas de amor?!
Não!, gritou ele, silenciando a multidão. E, de repente, o estádio ficou desabitado. Sentiu-se só, a baliza desprotegida, o vizinho avançando na grande área. O Desportivo estava prestes a concretizar quando ele derrubou a mesa, partindo todos os copos.
Mas como é?! Não há árbitro nesta merda do jogo?! Porque era bem visível que o vizinho estava fora de jogo, em nítida posição irregular. Assim confirmaram, rindo-se, os clientes do bar O Bazuqueiro.
Entretanto, em casa a mulher preparava a chegada triunfal do homem que trazia os golos nos ombros, galardoado de vitórias. Colocou à vista um vaso que Sozinho Armando chutara para um canto na anterior derrota. Remendou a dor daquela lembrança enchendo o vaso com flores. Foi mesmo mais longe, recolocando na parede o poster rasgado da mulher nua deitada sobre um carro. Olhou o rasgão no cartaz: aquela rotura era a fronteira que dividia o mundo dela e o dele. E depois sorriu: afinal, quem estava rasgado não era o papel mas aquela mulher que invadira a sua soberania. Que estrutura teria emitido guia-de-marcha para aquela mulher se intrometer no reino sagrado que era seu e dos seus filhos?! Mas agora, olhando de novo o cartaz, ela sentia-se dona da situação. Ela, Esmeralda, é que convidara a mulher nua a partilhar da alegre chegada de Sozinho Armando.
Já o seu contentamento enchia a sala, Esmeralda cantando tanto que a voz transbordava. Os vizinhos escutavam tamanha alegria, saudavam o Maxaquene, autor de golos e da felicidade tão momentânea de Esmeralda, sempre magoada de tristezas, sempre derrotada no campeonato da vida.
É então que chega a casa Sozinho Armando. Escutando o derramar da alegria, ele inquieta-se. Qual o motivo de tanta festa na Esmeralda?! Só podia ser a confirmação da sua suspeita: o vizinho do Desportivo marcara golo na sua baliza desguarnecida!
Nélson Saúte
Nos últimos tempos contactei de perto com a cultura africana e redescobri o prazer de ler estórias. Já conhecia Luandino, Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Agualusa, Mia Couto... Hoje não vou falar desses «monstros» da cultura africana, mas de um escritor moçambicano – Nélson Saúte. A leitura de «O Apóstolo da Desgraça» (Publicações D. Quixote) levou-me a redescobrir novos sons, novas cores... «A baliza desguarnecida de Sozinho Armando» é um dos contos do livro de Nélson Saúte que aqui reproduzo, com a devida vénia.
A baliza desguarnecida de Sozinho Armando
Sozinho Armando saiu do estádio superlotado de alegrias. Já descia o atalho que o levava do futebol, mas a multidão ainda lhe habitava, a claque vibrando em seus ouvidos. A imagem do jogador do Maxaquene ainda rematava na sua memória o golo da vitória. Era urgente comemorar. No bar O Bazuqueiro sentiu a sua multidão, aplaudindo a cerveja. Cada copo comemorava um golo. Lembrou-se da promessa à saída do estádio: hoje não vou bater na Esmeralda. Até lhe vou levar uma prenda, ela merece tal alegria.
De facto, ela merecia. Afinal, a paga dos seus sacrifícios eram pancadas, todos os dias, depois do encontro com os copos. Ela se encolhia nos seus choros, amparando os filhos para os proteger das sobras da porrada. Esmeralda ouvia os relatos, mesmo não gostando da bola. Queria saber se o Maxaquene ganhava ou não e assim adivinhava como seria a chegada do marido. Sozinho Armando descarregava nela a euforia das multidões. Debruçada sobre o Xirico, os rádios que o socialismo inundou no país, Esmeralda jogava à baliza do Maxaquene. O avançado adversário fuzilava o guarda-redes e ela levantava voo, os sonhos dela caíam sobre o parquet. Nessa tarde, ela também recebeu o troféu da vitória.
Entretanto, no bar O Bazuqueiro os copos vazavam-se na alegria de Sozinho Armando. Prenda! Para quê prenda?! Uma mulher não pode levar muito mimo, senão fica estragada.
Ele pensava na Esmeralda: será que ela ouvia o relato sozinha?! Como é que o vizinho, um gajo do Desportivo, sabia o que se passara no jogo mesmo sem ir ao estádio?! Ouvia na rádio?! Como, se ele não tinha rádio! Ou ouvia os relatos no Xirico familiar e ao colo exclusivo da Esmeralda?! A suspeita azedava mais que a cerveja. A alma embriagava-se mais de desconfiança que o álcool. Ele perguntava: será que a Esmeralda tinha coragem para fazer uma coisa dessas?! Mesmo com todas aquelas porradas que lhe dedicava, indubitáveis provas de amor?!
Não!, gritou ele, silenciando a multidão. E, de repente, o estádio ficou desabitado. Sentiu-se só, a baliza desprotegida, o vizinho avançando na grande área. O Desportivo estava prestes a concretizar quando ele derrubou a mesa, partindo todos os copos.
Mas como é?! Não há árbitro nesta merda do jogo?! Porque era bem visível que o vizinho estava fora de jogo, em nítida posição irregular. Assim confirmaram, rindo-se, os clientes do bar O Bazuqueiro.
Entretanto, em casa a mulher preparava a chegada triunfal do homem que trazia os golos nos ombros, galardoado de vitórias. Colocou à vista um vaso que Sozinho Armando chutara para um canto na anterior derrota. Remendou a dor daquela lembrança enchendo o vaso com flores. Foi mesmo mais longe, recolocando na parede o poster rasgado da mulher nua deitada sobre um carro. Olhou o rasgão no cartaz: aquela rotura era a fronteira que dividia o mundo dela e o dele. E depois sorriu: afinal, quem estava rasgado não era o papel mas aquela mulher que invadira a sua soberania. Que estrutura teria emitido guia-de-marcha para aquela mulher se intrometer no reino sagrado que era seu e dos seus filhos?! Mas agora, olhando de novo o cartaz, ela sentia-se dona da situação. Ela, Esmeralda, é que convidara a mulher nua a partilhar da alegre chegada de Sozinho Armando.
Já o seu contentamento enchia a sala, Esmeralda cantando tanto que a voz transbordava. Os vizinhos escutavam tamanha alegria, saudavam o Maxaquene, autor de golos e da felicidade tão momentânea de Esmeralda, sempre magoada de tristezas, sempre derrotada no campeonato da vida.
É então que chega a casa Sozinho Armando. Escutando o derramar da alegria, ele inquieta-se. Qual o motivo de tanta festa na Esmeralda?! Só podia ser a confirmação da sua suspeita: o vizinho do Desportivo marcara golo na sua baliza desguarnecida!
Nélson Saúte
Wednesday, June 22, 2005
Hoje jogo EU
É sempre com prazer que leio as crónicas do meu amigo António Pereira. E quando se trata de um «Hoje Jogo EU» (uma das mais antigas rubricas de «A BOLA», uma janela para o Mundo, muito antes do 25 de Abril...), o prazer é redobrado. O António está na Holanda, em serviço de reportagem, e a crónica que se segue foi publicada em «A BOLA» de segunda-feira.
Na Holanda mandam as mulheres e os ciclistas. Estes últimos estão em todo o lado, surgem do nada e atravessam-se à frente dos carros com a mesma naturalidade com que falam ao telemóvel ou montam a bicicleta de canadianas aos ombros, serpenteando alegremente pela infindável rede viária de que dispõe toda a cidade.
Eu, eterno pendura, divirto-me com esta saudável irresponsabilidade, enquanto o Pona, mais rotinado na agressividade verbal das estradas portuguesas, não se cansa de praguejar contra estas melgas, mas tão consciente como eu de que atropelar um deles é mais grave que abalroar uma vaca sagrada nas ruas de Bombaim.
A mesma consequência enfrenta o marido que se atreva a violar o espírito da «ladies night», ou não fossem as rainhas o maior factor de união do povo holandês. Juliana ou Beatriz, uma delas deu um forte contributo à causa feminina ao institucionalizar as quintas-feiras como o dia da mulher, o mesmo é dizer que o marido fica em casa a tomar conta dos filhos, enquanto a mulher sai para o forrobodó ou o que bem lhe apetecer. E escusam eles de montar vigilância, porque em toda a cidade os bares e as discotecas só permitem entrada aos homens já a meio da noite.
Para mim, será, porventura, o maior desafio ao meu conceito de igualdade de direitos e abstenho-me de dizer publicamente o que penso do assunto. Mas dei comigo a rir sozinho nas ruas de Amesterdão, só de imaginar a reacção de alguns maridos que conheço em Lisboa se fossem induzidos a fazer esta pequenina cedência...
António Pereira
É sempre com prazer que leio as crónicas do meu amigo António Pereira. E quando se trata de um «Hoje Jogo EU» (uma das mais antigas rubricas de «A BOLA», uma janela para o Mundo, muito antes do 25 de Abril...), o prazer é redobrado. O António está na Holanda, em serviço de reportagem, e a crónica que se segue foi publicada em «A BOLA» de segunda-feira.
Na Holanda mandam as mulheres e os ciclistas. Estes últimos estão em todo o lado, surgem do nada e atravessam-se à frente dos carros com a mesma naturalidade com que falam ao telemóvel ou montam a bicicleta de canadianas aos ombros, serpenteando alegremente pela infindável rede viária de que dispõe toda a cidade.
Eu, eterno pendura, divirto-me com esta saudável irresponsabilidade, enquanto o Pona, mais rotinado na agressividade verbal das estradas portuguesas, não se cansa de praguejar contra estas melgas, mas tão consciente como eu de que atropelar um deles é mais grave que abalroar uma vaca sagrada nas ruas de Bombaim.
A mesma consequência enfrenta o marido que se atreva a violar o espírito da «ladies night», ou não fossem as rainhas o maior factor de união do povo holandês. Juliana ou Beatriz, uma delas deu um forte contributo à causa feminina ao institucionalizar as quintas-feiras como o dia da mulher, o mesmo é dizer que o marido fica em casa a tomar conta dos filhos, enquanto a mulher sai para o forrobodó ou o que bem lhe apetecer. E escusam eles de montar vigilância, porque em toda a cidade os bares e as discotecas só permitem entrada aos homens já a meio da noite.
Para mim, será, porventura, o maior desafio ao meu conceito de igualdade de direitos e abstenho-me de dizer publicamente o que penso do assunto. Mas dei comigo a rir sozinho nas ruas de Amesterdão, só de imaginar a reacção de alguns maridos que conheço em Lisboa se fossem induzidos a fazer esta pequenina cedência...
António Pereira
Wednesday, June 15, 2005
Koeman servido à hora do jantar… em espanhol
Logo na sua apresentação oficial, em Lisboa, como novo treinador do Benfica, o holandês Ronald Koeman (1) deu nas vistas ao expressar-se num castelhano impecável. Na pronúncia como na fluência do vocabulário da língua de Cervantes. «Hablaba» a sua vivência de mais de dez anos em Espanha, como jogador do Barcelona. Melhor: «hablaba» o que em Espanha é uma obrigação natural para qualquer estrangeiro. E nada tem a ver com a propalada inépcia dos espanhóis nas outras línguas. É, antes, uma afirmação de orgulho pelo seu próprio idioma nacional. A começar pelos meios de comunicação social: Koeman, enquanto jogou em Espanha, ou se acaso passasse a ser o treinador de um qualquer clube espanhol (2), não falasse ele na língua oficial de Espanha, seguramente que nenhuma televisão ou estação de rádio lhe transmitiria a conferência de imprensa. Ainda por cima em directo e à hora nobre dos noticiários da noite...
1) Koeman [Koe, «vaca» + man, «homem», em holandês] pronuncia-se Küman e não «Kóman», nem «Kóiman» ou «Kôiman», como indistintamente se ouve no audiovisual português.
2) Carlos Queirós, Figo, Deco, Ronaldo, Roberto Carlos, Ronaldinho Gaúcho, etc. que o digam como tiveram, logo que foram para Espanha, de... falar em espanhol. Em Portugal, faz-se gala precisamente do contrário. Por estes dias, no Algarve, decorre um badaladíssimo festival de música e com músicos portugueses, brasileiros e cabo-verdianos, chamado... «Algarve Festival Summer». É a diferença!
JMC
Logo na sua apresentação oficial, em Lisboa, como novo treinador do Benfica, o holandês Ronald Koeman (1) deu nas vistas ao expressar-se num castelhano impecável. Na pronúncia como na fluência do vocabulário da língua de Cervantes. «Hablaba» a sua vivência de mais de dez anos em Espanha, como jogador do Barcelona. Melhor: «hablaba» o que em Espanha é uma obrigação natural para qualquer estrangeiro. E nada tem a ver com a propalada inépcia dos espanhóis nas outras línguas. É, antes, uma afirmação de orgulho pelo seu próprio idioma nacional. A começar pelos meios de comunicação social: Koeman, enquanto jogou em Espanha, ou se acaso passasse a ser o treinador de um qualquer clube espanhol (2), não falasse ele na língua oficial de Espanha, seguramente que nenhuma televisão ou estação de rádio lhe transmitiria a conferência de imprensa. Ainda por cima em directo e à hora nobre dos noticiários da noite...
1) Koeman [Koe, «vaca» + man, «homem», em holandês] pronuncia-se Küman e não «Kóman», nem «Kóiman» ou «Kôiman», como indistintamente se ouve no audiovisual português.
2) Carlos Queirós, Figo, Deco, Ronaldo, Roberto Carlos, Ronaldinho Gaúcho, etc. que o digam como tiveram, logo que foram para Espanha, de... falar em espanhol. Em Portugal, faz-se gala precisamente do contrário. Por estes dias, no Algarve, decorre um badaladíssimo festival de música e com músicos portugueses, brasileiros e cabo-verdianos, chamado... «Algarve Festival Summer». É a diferença!
JMC
Monday, June 13, 2005
EUGÉNIO DE ANDRADE
Eugénio de Andrade, um dos poetas portugueses mais lidos e traduzidos, faleceu hoje. Após algumas tentativas juvenis que mais tarde repudiou, impôs-se definitivamente no panorama da actual poesia portuguesa com «As Mãos e os Frutos». Contemporâneo dos movimentos neo-realista e surrealista, quase não acusou a influência de quaisquer escolas literárias, propondo uma poesia elementar, «solar», cuja musicalidade só encontra precedentes na nossa lírica medieval ou num poeta como Camilo Pessanha, que Eugénio de Andrade assumiu – a par de Cesário Verde – como um dos seus mestres. Muito sensual e literária, plástica e musical, a sua poesia concebe-se como a reelaboração da palavra até um limite de despojamento que parte do mundo para reencontrar nele o ser eleito e, em última análise, a solidão como reduto essencial.
Eugénio de Andrade teve a faculdade de articular o circunstancial com o absoluto, de perceber num ambiente concreto a voz de comunicação que o levará à inscrição poética, à transfiguração modelar, numa expressão límpida e pura muito própria.
Se muitos poetas portugueses da nossa época são marcados pelo desencanto, Eugénio de Andrade foi buscar ao paraíso da infância, à intimidade com a terra, à pura felicidade de se ter um corpo a fulgurante alegria de alguns momentos privilegiados.
Aqui reproduzo alguns poemas que muito me marcaram, em jeito de singela homenagem ao poeta:
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
***
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
***
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
***
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
***
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade, um dos poetas portugueses mais lidos e traduzidos, faleceu hoje. Após algumas tentativas juvenis que mais tarde repudiou, impôs-se definitivamente no panorama da actual poesia portuguesa com «As Mãos e os Frutos». Contemporâneo dos movimentos neo-realista e surrealista, quase não acusou a influência de quaisquer escolas literárias, propondo uma poesia elementar, «solar», cuja musicalidade só encontra precedentes na nossa lírica medieval ou num poeta como Camilo Pessanha, que Eugénio de Andrade assumiu – a par de Cesário Verde – como um dos seus mestres. Muito sensual e literária, plástica e musical, a sua poesia concebe-se como a reelaboração da palavra até um limite de despojamento que parte do mundo para reencontrar nele o ser eleito e, em última análise, a solidão como reduto essencial.
Eugénio de Andrade teve a faculdade de articular o circunstancial com o absoluto, de perceber num ambiente concreto a voz de comunicação que o levará à inscrição poética, à transfiguração modelar, numa expressão límpida e pura muito própria.
Se muitos poetas portugueses da nossa época são marcados pelo desencanto, Eugénio de Andrade foi buscar ao paraíso da infância, à intimidade com a terra, à pura felicidade de se ter um corpo a fulgurante alegria de alguns momentos privilegiados.
Aqui reproduzo alguns poemas que muito me marcaram, em jeito de singela homenagem ao poeta:
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
***
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
***
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
***
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
***
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Friday, June 10, 2005
CALINADAS
O célebre verbo «tar»...
(In «O Jogo»)
Mandados e mandatos
Ouvido atento captou estas palavras de Paulo Camacho no «Jornal da Noite» da SIC: «... foram passados mais de 30 mandatos judiciais...» É óbvio que se tratava de mandados e não de mandatos. Os mandatos existem no direito administrativo, civil e comercial e têm um conteúdo muito diferente de mandados. Além do mais, os mandados, por serem uma ordem, emitem-se, não são «passados».
Serão adesivos?
«Louçã, Fazenda e Portas já só conseguem disfarçar com a aderência à candidatura de José Sá Fernandes à Câmara de Lisboa.»
(Raul Vaz, director adjunto do «DN»)
É certo que há quem queira fazer crer que adesão e aderência são a mesma coisa. Mas não terá o director adjunto de um jornal a obrigação de conhecer a diferença?
Suspenso, logo existe...
«Quando apoiei o dr. Mário Soares, contra a posição oficial do PSD do prof. Cavaco Silva, já me tinham suspenso de militante...»
(Valentim Loureiro)
Errar é humanitário?
«ONU quer travar tragédia humanitária no Sudão»
(Alberta Marques Fernandes, na RTP 2)
Os media portugueses insistem em utilizar incorrectamente o termo «humanitário».
O célebre verbo «tar»...
(In «O Jogo»)
Mandados e mandatos
Ouvido atento captou estas palavras de Paulo Camacho no «Jornal da Noite» da SIC: «... foram passados mais de 30 mandatos judiciais...» É óbvio que se tratava de mandados e não de mandatos. Os mandatos existem no direito administrativo, civil e comercial e têm um conteúdo muito diferente de mandados. Além do mais, os mandados, por serem uma ordem, emitem-se, não são «passados».
Serão adesivos?
«Louçã, Fazenda e Portas já só conseguem disfarçar com a aderência à candidatura de José Sá Fernandes à Câmara de Lisboa.»
(Raul Vaz, director adjunto do «DN»)
É certo que há quem queira fazer crer que adesão e aderência são a mesma coisa. Mas não terá o director adjunto de um jornal a obrigação de conhecer a diferença?
Suspenso, logo existe...
«Quando apoiei o dr. Mário Soares, contra a posição oficial do PSD do prof. Cavaco Silva, já me tinham suspenso de militante...»
(Valentim Loureiro)
Errar é humanitário?
«ONU quer travar tragédia humanitária no Sudão»
(Alberta Marques Fernandes, na RTP 2)
Os media portugueses insistem em utilizar incorrectamente o termo «humanitário».
Monday, June 06, 2005
Estou bêbedo de tristeza. Desejaria que a noite fosse eterna, que o céu sorrisse pela boca das estrelas... Seria pedir de mais, eu sei. O meu destino não deve comportar desejos etéreos – resta-me converter a dor ao credo das palavras. «Tudo, menos a piedade…», diria o Álvaro de Campos. E diria certo. Mas, às vezes, o coração contorce-se e é necessário sangrar.
[Ia dizer avante! E encontrei-me a sorrir. Acontece-me sempre isto, quando tento projectar-me num espaço ou num tempo. Qualquer dia, de tão virtual, talvez me cresçam certezas na boca…]
Veículos de dor atropelam os dias e, no átrio imenso do edifício do desespero, acalento o morbo que corrompe por dentro as veias que dão vida e gosto à morte.
Caminho em busca da renúncia
com flechas de vento
nas asas da derrota
Levo na cinza dos meus olhos
toda aquela angústia branca
que viceja na espuma dos meus medos
Por entre pedras e poemas
bêbedo e só
eu vou cantando
a minha oração de vencido
José Bação Leal
[Ia dizer avante! E encontrei-me a sorrir. Acontece-me sempre isto, quando tento projectar-me num espaço ou num tempo. Qualquer dia, de tão virtual, talvez me cresçam certezas na boca…]
Veículos de dor atropelam os dias e, no átrio imenso do edifício do desespero, acalento o morbo que corrompe por dentro as veias que dão vida e gosto à morte.
Caminho em busca da renúncia
com flechas de vento
nas asas da derrota
Levo na cinza dos meus olhos
toda aquela angústia branca
que viceja na espuma dos meus medos
Por entre pedras e poemas
bêbedo e só
eu vou cantando
a minha oração de vencido
José Bação Leal
Friday, June 03, 2005
Bueda beijinhos pa todos
Ora aqui está um post da nova vaga, da Inês, nada ao estilo do escrita-em-dia, mas engraçado, porque mostra a forma como os jovens se exprimem – pa, qd, k, ñ, smp, bueda... No meu tempo, «isto» era estenografia... Nas minhas lides jornalísticas também inventei um estilo de escrita parecido (abreviado). Ainda hoje consigo tomar notas rápidas (sem gravador...) quando alguém está a falar. Depois, é só transcrever os gatafunhos para o computador, dar corpo ao texto. É simples e eficaz, mas nada de abusos!
Aqui tá mais uma coisa k adoro. Desenhos animados. De vez em qd, dou por mim a ficar c os nervos à flor da pele qd o coiote cai mais uma vez nas próprias armadilhas ou qd o tom ñ apanha o jerry... OU QD AQUELA COISA HORROROSA DE NOME TWEETY SE PÕE A DIZER «I TOT A TAW A PUDDY CAT!». Detesto aquele pássaro! Complica-me o sistema...
Adiante... Chego ao ponto de esperar pelas cinco da tarde pa ver o Disney Channel e ver o House of Fun ou lá cm se chama, onde todas as personagens da Disney se juntam a tomar um copo... É BUEDA CURTIDO!!!
Sou uma amante de cartoons. Acho k smp vou gostar de vê-los e tenho a certeza de k ñ sou a única a pensar assim. De vez em qd solto a criança k há em mim e lá vai ela agarrar-se à tv ligada no Cartoon Network e afins.
Gostava k me dissessem quais são ou foram os vossos desenhos animados favoritos. É smp bom recordar.
Beijinhos pa todos!
Ora aqui está um post da nova vaga, da Inês, nada ao estilo do escrita-em-dia, mas engraçado, porque mostra a forma como os jovens se exprimem – pa, qd, k, ñ, smp, bueda... No meu tempo, «isto» era estenografia... Nas minhas lides jornalísticas também inventei um estilo de escrita parecido (abreviado). Ainda hoje consigo tomar notas rápidas (sem gravador...) quando alguém está a falar. Depois, é só transcrever os gatafunhos para o computador, dar corpo ao texto. É simples e eficaz, mas nada de abusos!
Aqui tá mais uma coisa k adoro. Desenhos animados. De vez em qd, dou por mim a ficar c os nervos à flor da pele qd o coiote cai mais uma vez nas próprias armadilhas ou qd o tom ñ apanha o jerry... OU QD AQUELA COISA HORROROSA DE NOME TWEETY SE PÕE A DIZER «I TOT A TAW A PUDDY CAT!». Detesto aquele pássaro! Complica-me o sistema...
Adiante... Chego ao ponto de esperar pelas cinco da tarde pa ver o Disney Channel e ver o House of Fun ou lá cm se chama, onde todas as personagens da Disney se juntam a tomar um copo... É BUEDA CURTIDO!!!
Sou uma amante de cartoons. Acho k smp vou gostar de vê-los e tenho a certeza de k ñ sou a única a pensar assim. De vez em qd solto a criança k há em mim e lá vai ela agarrar-se à tv ligada no Cartoon Network e afins.
Gostava k me dissessem quais são ou foram os vossos desenhos animados favoritos. É smp bom recordar.
Beijinhos pa todos!
Wednesday, June 01, 2005
Não gosto de festas
Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso, odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço: «Vamos dançar?» E lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e do volume da música.
Terminado o número, um tanto humilhado, confesso, porque tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode: «O que foi, meu velho? Estás chateado?»
E eu, que não, esforçando-me por sorrir, por rir às gargalhadas, como o resto da chusma. Chateado? Porque havia de estar chateado? O dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou..., e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim.
Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sobriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o, de repente, tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum: visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.
(...)
José Eduardo Agualusa
Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso, odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço: «Vamos dançar?» E lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e do volume da música.
Terminado o número, um tanto humilhado, confesso, porque tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode: «O que foi, meu velho? Estás chateado?»
E eu, que não, esforçando-me por sorrir, por rir às gargalhadas, como o resto da chusma. Chateado? Porque havia de estar chateado? O dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou..., e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim.
Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sobriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o, de repente, tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum: visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.
(...)
José Eduardo Agualusa
Martunis está em Portugal
A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) recebeu hoje a visita de Martunis, a criança que sobreviveu ao maremoto que assolou o sudoeste asiático em Dezembro de 2004. O jovem, de oito anos, fez-se acompanhar pelo pai, Sarbini, o médico Teuku Taharuddin e ainda por crianças da Escola Secundária José Gomes Ferreira, de Benfica.
O presidente FPF, Gilberto Madail, foi o anfitrião do encontro entre a comunicação social e Martunis, neste Dia Mundial da Criança. «Esta visita já estava prometida há algum tempo. Martunis vai assistir ao jogo Portugal-Eslováquia (sábado, no Estádio da Luz) e privar de perto com os jogadores da Selecção Nacional. Agora, Martunis vai conhecer Lisboa e terá um programa especialmente concebido para ele, com visitas aos locais que as crianças preferem», afirmou o presidente da FPF.
«Posso garantir ainda que a família de Martunis vai receber uma doação de 40 mil euros, de forma a reconstruir a sua vida, que sofreu um grande abalo depois da tragédia de Dezembro», acrescentou Gilberto Madail.
Martunis foi encontrado, 21 dias depois da tragédia no sudoeste asiático, numa praia da região de Banda Aceh, envergando uma camisola da Selecção portuguesa.
A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) recebeu hoje a visita de Martunis, a criança que sobreviveu ao maremoto que assolou o sudoeste asiático em Dezembro de 2004. O jovem, de oito anos, fez-se acompanhar pelo pai, Sarbini, o médico Teuku Taharuddin e ainda por crianças da Escola Secundária José Gomes Ferreira, de Benfica.
O presidente FPF, Gilberto Madail, foi o anfitrião do encontro entre a comunicação social e Martunis, neste Dia Mundial da Criança. «Esta visita já estava prometida há algum tempo. Martunis vai assistir ao jogo Portugal-Eslováquia (sábado, no Estádio da Luz) e privar de perto com os jogadores da Selecção Nacional. Agora, Martunis vai conhecer Lisboa e terá um programa especialmente concebido para ele, com visitas aos locais que as crianças preferem», afirmou o presidente da FPF.
«Posso garantir ainda que a família de Martunis vai receber uma doação de 40 mil euros, de forma a reconstruir a sua vida, que sofreu um grande abalo depois da tragédia de Dezembro», acrescentou Gilberto Madail.
Martunis foi encontrado, 21 dias depois da tragédia no sudoeste asiático, numa praia da região de Banda Aceh, envergando uma camisola da Selecção portuguesa.