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Thursday, March 31, 2005

Nada como uma boa polémica, ainda para mais entre «pesos-pesados» da escrita e não só: Vital Moreira, Baptista-Bastos e Eduardo Cintra Torres. Aconteceu em Janeiro de 2000, nas páginas de o «Público» e o «Diário Económico». Na altura segui-a com atenção e agora resolvi recuperá-la no «escrita-em-dia».

Crónica do falar lisboetês

De súbito, o homem do quiosque de Lisboa a quem eu pedira os meus jornais habituais interpelou-me:
– O senhor é do Norte, não é?
Respondi-lhe que não, que nasci na Bairrada e resido há quase 40 anos em Coimbra. Fitou-me, perplexo. Logo compreendi que do ponto de vista de Lisboa tudo o que fique para cima de Caneças pertence ao Norte, uma vaga região que desce da Galiza até às portas da capital. Foi a minha vez de indagar porque me considerava oriundo do Norte. Respondeu de pronto que era pela forma como eu falava, querendo com isso significar, obviamente, que eu não falava a língua tal como se fala na capital, que para ele, presumivelmente, não poderia deixar de ser a forma autorizada de falar português.
Foi a primeira vez que tal me aconteceu. Julgava eu que falava um português padrão, normalmente identificado com a forma como se fala «grosso modo« entre Coimbra e Lisboa e cuja versão erudita foi sendo irradiada desde o século XVI pela Universidade de Coimbra, durante muitos séculos a única universidade portuguesa. Afinal, via-me agora reduzido à patológica condição de falante de um dialecto do Norte, um desvio algo assim como a fala madeirense ou a açoriana.
Na verdade – logo me recordei –, não é preciso ser especialista para verificar as evidentes particularidades do falar alfacinha dominante. Por exemplo, «piscina» diz-se «pichina», «disciplina» diz-se «dichiplina». E a mesma anomalia de pronúncia se verifica geralmente em todos os grupos «sce» ou «sci»: «crecher» em vez de «crescer», «seichentos» em vez de «seiscentos», e assim por diante…
O mesmo sucede quando uma palavra terminada em «s» é seguida de outra começada por «si» ou «se». Por exemplo, a expressão «os sintomas» sai algo parecido com «uchintomas», «dois sistemas» como «doichistemas». Ainda na mesma linha, a própria pronúncia «de Lisboa» soa tipicamente a «L'jboa».
Outra divergência notória tem a ver com a pronúncia dos conjuntos «-elho» ou «-enho», que soam cada vez mais como «-ânho» ou «-âlho», como ocorre por exemplo em «coelho», «joelho», «velho», frequentemente ditos como «coalho», «joâlho» e «valho».
Uma outra tendência cada vez mais vulgar é a de comer os sons, sobretudo a sílaba final, que fica reduzida a uma consoante aspirada. Por exemplo: «pov» ou «continent», em vez de «povo» e «continente». Mas essa fonofagia não se limita às sílabas finais. Se se atentar na pronúncia da palavra «Portugal», ela soa muitas vezes como algo parecido com «P'rt'gâl».
O que é mais grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às classes populares, antes é compartilhada crescentemente por gente letrada e pela generalidade do mundo da comunicação audiovisual, estando por isso a expandir-se, sob a poderosa influência da rádio e da televisão.
Penso que não se trata de um desenvolvimento linguístico digno de aplauso. Este falar português, cada vez mais cheio de «chês» e de «jês», é francamente desagradável ao ouvido, afasta cada vez mais a pronúncia em relação à grafia das palavras e torna o português europeu uma língua de sonoridade exótica, cada vez mais incompreensível já não somente para os espanhóis (apesar da facilidade com que nós os entendemos), mas inclusive para os brasileiros, cujo português mantém a pronúncia bem aberta das vogais e uma rigorosa separação de todas as sílabas das palavras.
A propósito do português do Brasil, vou contar uma pequena história que se passou comigo. Na minha primeira visita a esse país, fui uma vez convidado para um programa de televisão em Florianópolis (Santa Catarina). Logo me avisaram de que precisava de falar devagar e tentar não comer os sons, sob pena de não ser compreendido pelo público brasileiro, que tem enormes dificuldades em compreender a língua comum, tal como falada correntemente em Portugal. Devo ter-me saído airosamente do desafio, porque, no final, já em «off», o entrevistador comentou: «O senhor fala muito bem português.» (queria ele dizer que eu tinha falado um português inteligível para o ouvido brasileiro). Não me ocorreu melhor e retorqui:
– Sabe, fomos nós que o inventámos...
Por vezes conto esta estória aos meus alunos de mestrado brasileiros, quando se me queixam de que nos primeiros tempos da sua estada em Portugal têm grandes dificuldades em perceber os portugueses, justamente pelo modo como o português é falado entre nós, especialmente no «dialecto» lisboetês corrente nas estações de televisão.
Quando deixei o meu solícito dono do quiosque lisboeta do início desta crónica, pensei dizer-lhe em jeito de despedida, parafraseando aquele episódio brasileiro:
– Sabe, a língua portuguesa caminhou de norte para sul...
Logo desisti, porém. Achei que ele tomaria a observação como uma piada de mau gosto. Mas confesso que não me agrada a ideia de que, por força da força homogeneizadora da televisão, cada vez mais portugueses sejam «colonizados» pela maneira de falar lisboeta. E mais preocupado ainda fico quando penso que nessa altura provavelmente teremos de falar em inglês para nos entendermos com os espanhóis e – ai de nós! – talvez com os próprios brasileiros...

Vital Moreira (in «Público» de 4 de Janeiro de 2000)

Contra o «sotaque único»

O meu amigo Vital Moreira escreveu, para o «Público», uma estranha crónica, na qual, com mão e ironia por igual pesadas, troça do sotaque lisboeta, a que chama inapropriadamente «lisboetês», no que seria, porventura, «lisboês».
O Vital sabe que os registos fonológicos ou fonéticos obedecem à natureza constitutiva de cada território idiomático. Qual a razão do dislate intempestivo? «A minha pátria é a minha língua portuguesa», disse-o Mia Couto, de maneira exemplar, na revista «Pública» do último domingo. O português falado (admito, até, que «mal falado») em Lisboa é-o assim tão, e tanto, quanto o de cada ilha dos Açores; ou do Alentejo, ou da meseta transmontana; ou do Bulhão, ou de Moçambique, ou de Timor Loro Sae, ou do Brasil, ou de sei lá quanto quê!? Menos em Coimbra, claro!, aí a fala fia fino, feliz e fluida.
Vital Moreira é dos homens mais lúcidos que conheço, e a sua curiosidade activa está a par da sua integridade moral e cultural. Eis porque o texto do meu velho amigo adquire uma espessura surpreendentemente «racista». Então, ó Vital, querias a globalização da fala?, o sotaque único? Deixa-nos comer as vogais, trocar os «conjuntos» de consoantes; deixa-nos dizer assim como assim falamos. A riqueza do idioma consiste nas suas variantes sintácticas e nos registos fonéticos. E as línguas são organismos vivos, que se remancham e remanejam a eles mesmos; que podem provir do norte ou do sul, que possuem uma qualidade miscível, de miscigenação, que deixam de ser pertença de, para se constituírem como leitos de nações. Depois, velho amigo, mais vale falar lisboês que escrever protugueiro com embaraços nas preposições, tropeços nos pronomes e perplexidade no uso das conjunções subordinadas.
Sei que sabes que eu sei que tu sabes. E, sans rancune (expressão idiomática lisboeta), abraça-te o teu BB, irremediavelmente de Lisboa, com o cerrado sotaque do bairro da Ajuda.

Baptista-Bastos (in «Diário Económico» de 7 de Janeiro de 2000)

Crónica do falar lisboetês (bis)

Juro que não pratiquei nenhuma das malfeitorias que o estimado escritor e publicista Baptista Bastos me imputa com inesperada ligeireza, na sua coluna de sexta-feira passada no «Diário Económico», onde me acusa severamente de, na minha última crónica, ter troçado da fala lisboeta e de querer um sotaque único para a língua portuguesa.
Quanto à maneira de falar lisboeta, limitei-me a apontar duas ou três das suas particularidades mais notórias para os de fora, aliás de modo necessariamente incompleto (por exemplo, não referi a pronúncia de palavras como «rio», «frio» e outras semelhantes, em que o «i» tem um som breve e não um som longo, como no resto do país). Mas fi-lo com o mesmo benévolo desprendimento com que referiria as peculiaridades da fala portuense ou beirã, ou algarvia ou açoriana, para não citar as da minha região natal, onde o «v» não existe e onde «vinho» e «velho», por exemplo, soam a «binho» e «belho» (o que me valeu outrora forte troça dos meus condiscípulos do liceu, obrigando-me a uma oportuna reciclagem de pronúncia).
Não estão, obviamente, em causa as idiossincrasias locais nem o respeito pelas especificidades culturais, nesta como noutras áreas. Longe de mim defender qualquer unicitarismo linguístico. Trata-se, pelo contrário, de combater a consumação de um. O meu ponto tem a ver justamente com o facto de os particularismos lisboetas se estarem a generalizar na pronúncia corrente no país, em prejuízo do padrão geral até há pouco aceite (e dos demais dialectos e sotaques locais).
O que eu questiono é esta mudança «forçada», que consiste em universalizar o que era privativo de Lisboa, só porque esta domina os meios audiovisuais nacionais, que nesta matéria são hoje decisivos (para além do descaso do ensino de português nas escolas). O que eu contesto nesta pendência é o império do lisboetês (ou seja, o português à moda de Lisboa), que se vai expandindo e reduzindo tudo o resto, tanto as demais falas locais ou regionais como a própria a língua padrão tradicional, a desprezíveis «provincianismos», que é a maneira de desqualificar, a partir de Lisboa, tudo o que se distinga da capital (e que na maior parte das vezes coincide com o mais crasso desconhecimento do resto do país).
Além disso, não posso deixar de lamentar essa evolução linguística também em termos de desenvolvimento do português como língua que não é somente nossa, não apenas porque a forma como se fala entre nós está a ficar inçada de sons francamente desagradáveis (uma sucessão de «ches» e de «jes»), mas também e sobretudo porque assim ela se vai tornando cada vez mais cerrada e incompreensível, mesmo no contexto da lusofonia, especialmente para os brasileiros. Não creio que seja de aplaudir esse resultado. Será que ainda partilhamos uma mesma língua quando a comunicação oral deixa de ser possível entre os seus falantes?
De resto, por mais encanto que encontremos na diversidade do modo de falar do Cais do Sodré (em lisboetês correntio pronuncie-se: «caich'dré»), das Avenidas Novas ou da linha de Cascais, isso não basta para apoiar a promoção de um particularismo linguístico ao estatuto de padrão linguístico nacional. Não consta, por exemplo, que o «Queen's English» esteja em vias de ser substituído como norma do inglês britânico pela fala das docas de Londres ou por qualquer outro localismo londrino. O que eu penso é que Lisboa não tem o direito de «impor» ao resto do país, a golpes de emissões de rádio e televisão, o seu particular modo de pronunciar a língua de todos nós.
Tudo isto tem, obviamente, a ver com o domínio lisboeta da comunicação audiovisual de âmbito nacional, tanto em termos de «agenda» como em termos de pessoal. Segundo o seu critério corrente, tudo o que interessa a Lisboa há-de, por definição, importar necessariamente ao resto do país (mesmo que se trate, por exemplo, do estado do trânsito na capital, acerca do qual são regularmente informados todos os portugueses de manhã à noite, desde Melgaço a Vila Real de Santo António, se não à Calheta e à ilha do Corvo), enquanto nada do que se passa fora de Lisboa pode pretender assumir relevância nacional, por maior que seja a sua importância absoluta.
Aqui há alguns anos, o incêndio da Câmara Municipal de Lisboa mobilizou as estações de rádio e televisão nacionais em prolongados «directos», transformando-o numa tragédia nacional. Se o mesmo desastre tivesse ocorrido, por exemplo, na Câmara Municipal de Coimbra, ainda que envolvesse o adjacente convento de Santa Cruz, provavelmente o facto não mereceria mais que uma menção de passagem num breve «flash» do noticiário regional do dia seguinte.
O mesmo unicitarismo lisboeta se nota, de resto, na paisagem humana das referidas estações nacionais, onde a percentagem de gente de fora de Lisboa e adjacências entre os apresentadores, locutores, comentaristas, convidados e «tutti quanti» não é seguramente superior à percentagem de portugueses na população de Macau, depois do fim da administração portuguesa. Apesar da criação do CNL, que aliás a solícita TV Cabo se encarrega de pôr em casa de todos os portugueses (não fossem eles perder o que se passa na capital), a RTP e a RDP (tal como as restantes estações supostamente nacionais) continuam a comportar-se, não como estações nacionais, que deveriam ser, por estatuto e vocação de serviço público nacional, mas sim como estações regionais de Lisboa. Não seria de mudar o nome para RTL e RDL?

Vital Moreira (in «Público» de 11 de Janeiro de 2000)

O lisboetês, o coimbrês e outros sotaques

Num artigo recente, Vital Moreira («Público» de 4-1-2000) valorizou negativamente a «poderosa influência da rádio e da televisão» na difusão por todo o país de um sotaque lisboeta a que chamou, depreciativamente, o «lisboetês». Trata-se de uma nova diabolização dos meios audiovisuais, bode expiatório habitual dos males do mundo moderno. Segundo o professor de Coimbra, «o mais grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às classes populares, antes é compartilhada crescentemente por gente letrada e pela generalidade do mundo da comunicação audiovisual».
Noutros países, outras nações poderão dizer o mesmo. A capital – que a nação escolheu ou acolheu como cidade primeira – impõe a sua forma de falar ao conjunto dos habitantes. O francês do Norte da França esmagou o francês do Sul por causa de Paris. Caberá aos linguistas dizer se esse sotaque «crescentemente compartilhado» é de facto lisboeta e, já agora, se é «grave», como afirma Vital Moreira. Já do ponto de vista empírico, ou até político, Vital Moreira terá dificuldade em defender que um sotaque genuíno seja «grave» ou mais «grave» que outro sotaque genuíno.
Mas convém reflectir um pouco sobre o papel da televisão neste processo. A forma identificadora do falar tem uma importância enorme nas nossas vidas. Os sotaques não identificam apenas a origem regional, identificam também a classe social e até a raça. Um estudo realizado nos EUA, em 1931, mostrou a capacidade dos ouvintes em caracterizar com grande precisão quem estavam a ouvir, inclusive na profissão.
Em «My Fair Lady», versão Broadway e cinema da peça «Pigmaleão», de George Bernard Shaw, o professor Higgins revela toda a intenção da obra logo na primeira cena: «Olhem para ela, arrancada da miséria e condenada por cada sílaba que pronuncia.» A «sua» Liza Doolittle será uma «lady», e não uma vendedora de flores com sotaque «cockney», no preciso momento em que falar como uma «lady». Seria absurdo que os jornalistas e a TV, enquanto instituição, não se preocupassem com a forma de falar para o público.
Ao contrário do que sugere Vital Moreira, a televisão em geral revela bastante cuidado na forma de falar dos seus principais protagonistas. Pode até dizer-se que há nos seus noticiários uma lei não escrita que estabelece três níveis de elocução da língua portuguesa, com fronteiras não tão fluidas quanto pode parecer aos próprios intervenientes. A realidade da fala em televisão é diferente nos três níveis que fazem a «verdade» da notícia: a elocução pelo pivot, pelo repórter e pela testemunha circunstancial. Na última linha da notícia, a testemunha é quem garante a confirmação da «verdade» enunciada pelo pivot e desenvolvida pelo repórter. A testemunha fala geralmente no local onde ocorreu o acontecimento. Quanto mais «regionalmente» falar, melhor para a «veracidade» da notícia. É, aliás, conveniente para a «veracidade» que numa notícia sobre o Alentejo, por exemplo, apareça um alentejano de falar cerrado.
O segundo nível da «verdade» da notícia é dado pelo repórter enviado ao local. Ele é o intermediário entre a testemunha e o pivot. O repórter pode ter um toque regionalista na voz, embora não seja necessário. Fica bem que o tenha: mostra que a estação de televisão está implantada na zona; mostra que o repórter entende e comunica com as testemunhas, isto é, que faz parte da «realidade» local. Mas, ao mesmo tempo, ele destaca-se dessa realidade, porque não fala o regionalismo cerrado como as testemunhas. Ele tem elementos do falar dos locais, mas não fala exactamente como eles. Ele «traduz» a realidade das testemunhas para um nível «superior». Este estar a meio caminho na forma de falar é uma realidade comprovável, por exemplo, nos telejornais regionais da RTP1: os repórteres das delegações regionais têm eventualmente um sotaque regional, mas muito ligeiro. Se ouvirmos com atenção os correspondentes regionais, verificaremos que um jornalista açoriano da RTP ou da SIC fala quase da mesma forma que um repórter do Porto ou de Faro ou de Castelo Branco. É conveniente, para eles, que assim seja pelas razões expostas acima.
É neste segundo nível da elocução da notícia audiovisual que surgem os repórteres que falam o tal sotaque que Vital Moreira refere como «lisboetês». São muitos, quer nas rádios quer na televisão (especialmente na RTP). Trata-se de uma forma de falar bastante afectada, não exactamente popular, mas de uma pequena burguesia que imita certa classe média de há 20 anos. As «tias» falavam assim há duas décadas; quando foram imitadas pela «gentinha», as «tias» mudaram o modo de falar. É, portanto, um sotaque menos regional que classista. O que distingue esta forma de falar é a falta de clareza na emissão das palavras e a «fonofagia», referidas por Vital Moreira. Os repórteres que assim falam, em geral das sedes lisboetas da RTP e da TVI (e de muitas rádios), cometem um erro grave, que é o de não controlarem o «sotaque» como fazem os repórteres das outras regiões, que o mantêm a um nível mínimo, como disse acima. Uma coisa é falar com um determinado sotaque lisboeta, que será tão legítimo como outro qualquer, outra coisa é comer palavras e ser pouco claro na emissão. Alguns repórteres receberam um microfone para a mão sem passar por qualquer teste «audio» das suas capacidades de comunicação na língua portuguesa.

Eduardo Cintra Torres (in «Público» de 17 de Janeiro de 2000)

Monday, March 28, 2005

«O Eusébio marca livres de trinta metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título.»


(Fernando Assis Pacheco, in «Memórias de Um Craque», da editora Assírio & Alvim)

Thursday, March 24, 2005

«23h30 da noite»

«Quatro pessoas foram detidas esta noite, pela Brigada de Trânsito, junto à Ponte Vasco da Gama, depois de uma perseguição. A perseguição começou por volta das 23h30 da noite de sábado perto da Costa da [de] Caparica, quando o veículo foi detectado em excesso de velocidade.»

Foi boa ideia terem esclarecido isso das horas, não fosse dar-se o caso de alguém pensar que tinha sido pelas 23h30 da manhã...
Joaquim Oliveira

Quando, recentemente, comprou por atacado todo o grupo media da PT, Joaquim Oliveira deu um passo relevantíssimo na sua vida de empresário e, de um momento para o outro, confirmou-se como um caso de estudo e sobretudo como um dos homens mais influentes do país.
Dando de barato que tanto a Alta Autoridade para Comunicação Social (a instituição moribunda mais activa do planeta graças a Rui Gomes da Silva) e a Autoridade da Concorrência confirmarão a transacção, uma vez que se trata de pouco mais que uma mudança de titularidade, importa pensar um pouco na responsabilidade que contraiu este empresário e do que isso pode significar como exemplo.
De Joaquim Oliveira sabe-se, simultaneamente, muito e pouco. Muito, porque à volta do seu crescimento empresarial e financeiro, das suas origens sociais e profissionais se contam histórias verdadeiras ou falsas, mas que só ganham relevância precisamente porque quem as cita procura desconsiderar e apoucar. Tivera ele feito exactamente tudo o que fez e nascido na Foz que a contextualização seria, necessariamente, diferente. Mas esse é um problema recorrente num país onde os brandos costumes existem como a arma mais feroz de difamação. São eles o maior tipo de violência criminosa praticada abundantemente e por quase todos e cada um de nós.
Pouco, porque ele próprio parece ser pouco dado a explicar as intenções com que de repente se atirou para a compra de tamanho grupo. A única excepção foi exactamente uma declaração ao «Diário Económico» em que se interrogava sobre os motivos pelos quais não lhe perguntavam se não estava comprador de mais, em vez de o colocar como vendedor, que o mesmo é dizer como mero especulador.
Ora, a afirmação é um indício positivo. Para Joaquim Oliveira, haveria, seguramente, muito mais áreas onde investir, com retorno assegurado e rápido, do que numa cadeia de comunicação e afins. É de esperar que a afirmação traduza, na realidade, uma vontade de dar um salto qualitativo de credibilização empresarial e, aí sim, social.
Era importante que assim fosse de facto. Para ele, para quem irá suceder-lhe um dia, já liberto de etiquetas preconceituosas, para as empresas e os seus funcionários e, sobretudo, para a sociedade portuguesa que bem precisa de exemplos de sucesso alicerçados e sérios e de órgãos de comunicação baseados em eficácia e rigor.
É, portanto, relevantíssimo para a comunidade saber, exactamente, o que vai fazer este sr. Oliveira. Será ele um testa-de-ferro e um especulador? Será ele um Jacques Rodrigues, o expoente do desrespeito indígena por jornalistas e leitores? Será ele um Berlusconi com um projecto político no bolso apoiado nos seus jornais, rádios e televisões? Será ele um Balsemão que junta magistralmente as facetas da seriedade e as da oportunidade comercial? Ou será ele, verdadeiramente, um construtor de uma nova atitude e o sucessor, em versão melhorada, do saudoso Luís Silva que, em má hora, optou pelo regaço de uma posição de conforto na PT em troca do seu pequeno império, esquecendo a sabedoria de Júlio César que dizia ser preferível ser o primeiro da aldeia que o segundo em Roma?
O tempo dirá, mas os primeiros sinais serão elucidativos e determinantes. Joaquim Oliveira joga agora a sua carreira. O que fizer, ficará como a sua imagem de marca. O caminho da legitimação positiva é certamente o mais difícil, mas também o mais atractivo para quem pretenda tornar-se uma referência ou até num exemplo e não numa mera máquina de fazer dinheiro.
Uma coisa também é certa: por mal que corra a gestão de Oliveira, dificilmente será pior que a de Miguel Horta e Costa. Desde a inexplicável saída de Henrique Granadeiro e as prodigiosas nomeações para a administração e direcção (aqui com algumas excepções de profissionais qualificados) da componente media da PT, tudo foi, aparentemente, feito para descredibilizar um grupo essencial para a existência de uma sociedade consolidadamente democrática. Esperemos que sejam águas passadas e que quanto a este caso tenhamos boas notícias para a sociedade e não propriamente notícias de jornal, porque essas, obviamente, deverão continuar a obedecer ao princípio incontroverso da profissão, segundo o qual «good news are no news».

Oliveira e Silva («Diário Económico»)

Wednesday, March 23, 2005

O «quizóide» está de volta!

Cuidem-se, caros leitores! O «quizóide» está de volta (existe um link, aqui ao lado...) Depois de largo tempo de hibernação, regressou cheio de pujança, com outros «meios», arrasador...
Surrealismo? Hiper-realismo? Realismo fantástico? «Non sense»? Em tempos esforcei-me para tentar enquadrar o «quizóide» numa destas correntes literárias, mas não consegui... Reli, inclusive, o Mário Henrique Leiria, reguei-o com muito gin tónico, mas nem assim... O «quizóide» é um animal de outras literaturas e se insistimos em tentar compreendê-lo... ficamos loucos!

«Mas tu estás a falar de quê, concretamente?»

PS – Não percam o último post («Zoofilias») do Esquizofrenias de Bolso!

Friday, March 18, 2005

«O Código Da Vinci»

Dan Brown, autor do best-seller «O Código Da Vinci», estava certamente mais interessado em produzir uma narrativa que interessasse os leitores e vendesse muitos exemplares que em investigar temas de natureza teológica e histórica. Mas, muitos meses depois de o livro ter-se transformado num verdadeiro fenómeno de vendas, quando do autor já se vêem nas livrarias montes e montes de um título subsequente, o Vaticano decidiu reagir e colocar uma alta figura eclesiástica - o arcebispo de Génova, ex-vice de Ratzinger - à frente de uma campanha para pôr em evidência as mentiras e embustes do «Código». A iniciativa surge na sequência de múltiplas tomadas de posição, ao nível da base, com destaque para a Opus Dei - severamente criticada na obra de Dan Brown.
Não espanta que a Igreja Católica se sinta incomodada com o sucesso (e o receio do impacto) de um livro que subverte representações de figuras da História do Cristianismo, a começar pelo próprio Cristo. Mas já é de estranhar que envolva altos cargos em campanhas contra uma obra de ficção, depois de ela já ter sido adquirida e lida por tantos e correndo o risco de ampliar ainda mais o fenómeno.
Assim como não deixa de ser sintomático que em casos deste tipo (recorde-se o filme «Je vous salue, Marie», de Godard, ou o «Evangelho Segundo Jesus Cristo», de Saramago) se insista nos aspectos negativos e quase nunca no que estes fenómenos possam conter (pelo menos ao nível da recepção) de sintoma de uma curiosidade ou de uma incessante procura em torno de figuras marcantes dos relatos bíblicos, como Jesus Cristo ou Maria Madalena.
O arcebispo de Génova, Tarcísio Bertone, insurge-se contra a campanha de marketing do livro, a qual sugere que nenhum católico adulto na fé deixará de ler o «Código». Mas a verdade é que um católico adulto na fé que fique perturbado com tal leitura não será, provavelmente, nem muito adulto nem grande católico...
Quatro séculos de jornalismo

A Associação Mundial de Jornais aceita como verdadeiras as evidências oferecidas pelo Museu Gutenberg (onde está exposta a primeira impressora do Mundo), em Mainz (Alemanha), de que o primeiro jornal do planeta foi produzido em 1605, por um tal Johann Carolus.
Estabelecido em Estrasburgo, que no início do século 17 fazia parte do império alemão e hoje pertence à França, Carolus pagava a uma rede de correspondentes e recebia notícias de outras cidades. Os relatos eram inicialmente escritos à mão, sob o título «Relationen», e vendidos por bom preço a assinantes ricos.
O fundador do Museu Gutenberg, Martin Welker, e o seu parceiro na descoberta, o historiador Jean Pierre Kintz, garantem que as cópias manuscritas já circulavam em 1604. Segundo os dois pesquisadores, Carolus adquiriu uma prensa naquele ano e, em 1605, começou a distribuir cópias impressas do seu «Relationen».
Já naquela época, ele pensava que ganharia muito mais dinheiro se aumentasse a circulação do seu jornal. Em Outubro de 1605, conforme documentos descobertos em Estrasburgo, Johann Carolus enviou uma petição ao Conselho da cidade a pedir protecção contra a reprodução dos seus conteúdos por outros impressores.
Antes dessa descoberta, a Associação Mundial de Jornais aceitava 1609 (ano de impressão das edições mais antigas ainda preservadas) como a data de nascimento do jornalismo.
O achado de Welke e Kintz faz de 2005 o 400.º aniversário do nascimento do jornalismo moderno. Em Julho, o Museu Gutenberg inaugura uma exposição que conta a história da instituição que acompanha e regista, há quatro séculos, os factos jornalísticos mais relevantes a nível mundial.

Wednesday, March 16, 2005

José Luís Peixoto

«(...) José Luís Peixoto tem essa qualidade notável: bastam duas linhas e entramos num continente novo, num lugar inédito do espaço literário.»

O elogio é feito por uma das maiores referências da crítica literária no nosso país: Eduardo Prado Coelho. O «alvo», José Luís Peixoto, é a grande revelação dos últimos anos entre a nova casta de «escribas» nacionais. Literatura «light»? Não! Definitivamente não!
Nascido no ano de 1974, José Luís Peixoto cedo despertou para as virtudes da escrita. A poesia foi o primeiro passo. O reconhecimento do valor que despontava veio do «DN Jovem» — suplemento do «Diário de Notícias» —, que não tardou em «adoptá-lo» como colaborador (quase) permanente — cerca de 70 poemas publicados. O curso de Línguas e Literaturas Modernas, na Universidade Nova, foi o passo seguinte, quiçá para aperfeiçoar um dom que costuma acompanhar os talentos natos.
Professor do ensino secundário durante alguns anos, José Luís Peixoto foi, no entanto, dando corpo à veia literária que o preenchia e lhe valeu a atribuição do prémio «Jovens Criadores do Instituto Português da Juventude», nos anos de 1998 e 2000. Depois de já ter publicado vários poemas e a primeira ficção («Morreste-me»), foi em Outubro de 2000 que alcançou a «maioridade» em termos de projecção nacional. A responsabilidade desse feito veio em forma de romance, titulado «Nenhum Olhar». O resto da «estória», para quem acompanha estas coisas da literatura, já não é novidade: Prémio José Saramago, finalista para atribuição do Grande Prémio de Romance e Novela da APE e do Prémio Pen Club, traduções em castelhano, francês e italiano, representante de Portugal em diversos eventos literários internacionais...
Um «boom» que, como o próprio confessa, não estava nos seus planos. Contudo, o estatuto granjeado leva a que José Luís Peixoto já não possa ser encarado como «the next big thing» da nossa literatura... A sua afirmação foi de tal forma convincente que é impossível passar ao lado deste fenómeno.

Friday, March 11, 2005

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais profunda que a tua

Monday, March 07, 2005

«Morreste-me»

Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital. Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos, desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero. Como no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama, a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder, pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai. À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como naúfragos, a luz abundante bebia-nos.
E esta tarde, e esta terra agora cruel. Na nossa rua, a nossa casa. A porta do quintal parada à minha frente, fechada, desafiante. Dizia nunca esquecerei, e esta tarde lembrei-me. Com os teus movimentos, tirei do bolso o teu molho de chaves e, como costumavas, usei todos os cuidados para escolher a chave certa, examinando cada uma, orgulhando-me de cada uma. E, na fechadura, o triunfo. As coisas a acontecerem devidamente. A ferrugem, as dobradiças soltaram um grito como um suspiro ou um estertor. O alumínio rente ao mármore arrastou, varreu uma figura certa e branca no cobertor grosso de folhas de pessegueiro. Abandonado sobre o tamanho grande de um inverno, o quintal de quando eu era pequeno, o quintal que construíste, pai. Tristes flores novas e folhas novas nos ramos das árvores, canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes de quando eu era pequeno e tu chegavas e me ensinavas trabalhos de grande. Orienta-te, rapaz. Eu oriento-me, pai. Não se preocupe. Eu também sei, eu também consigo. Eu oriento-me, pai. Não se rale. O trabalho não me mete medo. Esteja descansado, pai. Flores novas e folhas novas nos ramos das árvores, canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes desta primavera triste.
Se pudesse tinha-te protegido. Chamavas-me pelo nome, chamavas-me filho, e ouvir o meu nome na tua voz, e ouvir filho no fio cálido da tua voz era uma emoção funda. Se pudesse tinha-te protegido. A esperança, pai. De três em três semanas, cinco manhãs seguidas viam-te ir ao tratamento; eu, teu filho, via-te ir ao tratamento e doía-me a vida, doía-me a vida que em ti se negava, a vida a gastar-te, ainda que a amasses, a vida a derrubar-te, ainda que a amasses. O tratamento. Falavas nele, dizias a palavra, dizias vou ao tratamento e nós que sabíamos, enchíamo-nos de uma amargura indelével, definitivamente marcada, vincada na nossa pele interior. Por tua vontade, nunca te atrasavas. Dizias vou ao tratamento, apressavas-me, apressavas a minha mãe, como se alguma coisa te pudesse curar, como se alguma coisa te pudesse devolver os dias. No hospital, a sala de espera estagnada de tempo inútil e a minha mãe sentada, só, longe da nossa casa e dos nossos sítios, como uma menina tímida, envergonhada. Tu a afastares-te, como o rapaz tratador de vida que sempre quiseste que eu fosse, a afastares-te, vestido com a camisa mais nova e as calças mais novas e a camisola que a minha irmã te deu pelos anos, a afastares-te, pelos corredores carregados de cinzento e acesos de electricidade baça, a afastares-te, e a sensação terrível de nunca mais voltares.
Entrei em casa. Apenas a lareira fria, as janelas fechadas a moldarem sombras finas no escuro. Do silêncio, da penumbra, um crescer de espectros, memórias? não, vultos que se recusavam a ser memórias, ou talvez uma mistura de carne e luz ou sombra. E vi-te pensei-te lembrei-te, à mesa, sentado no teu lugar. Ainda sentado no teu lugar, e eu, a minha mãe, a minha irmã, sentados também, a rodearmos-te. Iguais ao que éramos. Ali estávamos há muito tempo, esquecidos abandonados desde um dia em que o passar das coisas parou na nossa felicidade simples singela. Como uma alegria, como se tivéssemos jantado ou esperássemos jantar ou o melhor banquete, estávamos. Felizes. Nada me era dito, mas eu, olhando, sabia tudo, como se fosse óbvio, como se não pudesse ser de outra maneira. Tu, de certeza, tinhas chegado do trabalho, e tinha sido um bom dia, e estavas contente por isso, e as pessoas não faltavam com o pagamento e isso era bom. A minha irmã andava no liceu, e as notas eram só satisfazes muitos e bastantes, e ainda era esperta, e sorria por isso. Eu andava no primeiro ano da telescola, e não pensava nas notas, e tinha jogado à bola, e tinha ganho, e se tivesse perdido era igual. A minha mãe, mãe verdadeira de todos nós, olhava-nos e sorria assim e sorria por isso. Felizes. Distantes da chuva grossa deste inverno negro, distantes do teu corpo gelado. Lívido na luz trémula das velas, arranjadinho, penteado com água, vestido com o fato que usaste no casamento da minha irmã: o teu corpo gelado. E a Capela de São Pedro cheia de gente a abraçar-me, cheia de gente a dizer-me coitadinho e os meus pêsames e sinto muito, cheia de gente a procurar-me e a querer agarrar-me e prender-me e dizer coitadinho e os meus pêsames e sinto muito. Pai. Perder-te. E revivi o silêncio insepulto dos teus lábios mortos. E as sombras de nós, como se apenas esperassem estes pensamentos para se perderem, misturaram-se no preto. O pó das horas sem gente a vivê-las cobriu os móveis e o espaço fechado entre eles. As paredes voltaram a separar o inverno nocturno, permanente da casa e o ciclo alternado dos dias e do mundo, alheio a nós, para lá de nós. Comigo, a casa estava mais vazia. O frio entrava e, dentro de mim, solidificava. As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios. E abri a janela. Muito longe do luto do meu sentir, do meu ser, ser mesmo, o sol-pôr a estender-se na aurora breve solene da nossa casa fechada, pai. E pensei não poderiam os homens morrer como morrem os dias? assim, com pássaros a cantar sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o fresco suave fresco, a brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o mundo inerte ou a mover-se calmo e o silêncio a crescer natural, o silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno.
Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

José Luís Peixoto (primeiro capítulo do livro «Morreste-me»)

Friday, March 04, 2005

Prisa questiona venda da Lusomundo

O grupo espanhol Prisa considera que o processo de venda da Lusomundo Media foi «estranho, com opacidade e sem a transparência que deve presidir às empresas cotadas em bolsa», segundo disse Juan Luís Cebrián, administrador-delegado da Prisa, a jornalistas portugueses em Madrid. O responsável mostrou-se «surpreendido» com a decisão final, «não porque o vencedor tenha sido outro [Olivedesportos], mas porque até sexta-feira circularam, entre os dois grupos, documentos de pré-contratos». Após o comunicado da PT à CMVM, «pensávamos que prosseguiriam as negociações e sempre nos disseram que não se tratava de um leilão».
Apesar disso, e porque a «diferença da oferta económica diferia apenas em um por cento e o nosso era um projecto estratégico, porque temos uma capacidade de gestão provada, não houve qualquer tipo de negociação e até agora não recebemos uma explicação», acrescentou Juan Luís Cebrián. «Ficámos surpreendidos, porque verificámos que foi um processo atípico, sem regras seguras e transparentes.»
No entanto, o Grupo Prisa está aberto à eventual compra de activos da Lusomundo Media, mas Juan Luís Cebrián sublinha que só há interesse nos grandes jornais e na rádio TSF. «Estamos dispostos a falar, mas o valor não será o mesmo. Tínhamos uma oferta, porque a compra da Lusomundo significava um importante crescimento para o grupo, pelas sinergias a desenvolver, mas a soma não é igual ao todo. Se alguém quer vender, estamos dispostos a sentar-nos e até a formar parcerias com outro grupo português», explicou.
No entanto, Cebrián refere que nada será igual, já que não haverá outra venda assim na Europa.

Thursday, March 03, 2005

«A revolta das palavras»

Há coisas do diabo. Normalmente tenho algumas hesitações ortográficas: entre o «porque» e o «por que», o «enfim» e o «em fim», entre o «a final» e o «afinal», e mais um sem-número delas.
Agora costumo acertar no «à» e no «há». E raras vezes tenho oportunidade do «ah!». Só que ao lançar-me no «post» anterior, embeiçado pela métrica da escrita (normalmente escrevo a contar sílabas pelos dedos), lá tropecei e saiu um calino «à pouco», em vez de um acertado «há pouco».
Um leitor atento deu por ela e eu, envergonhado, lá atravessei a rua – e que frio estava! – para vir aqui ao computador emendar, antes que passasse de distraído a… burro.
Estava eu já em trabalhos de emendas quando nos alçapões da memória me surgiu uma lembrança. Lá fui à cata e... ei-la. Vem a dita no «Estilística da Língua Portuguesa», do professor Manuel Rodrigues Lapa, um livro carregado de saber e bom humor.
E é precisamente a propósito do carácter abstracto e impessoal do verbo haver: trata-se de uma citação sacada do livro «O Trigo e o Joio», de Fernando Namora. Há nessa fantástica história uma tal D. Quitéria que teima em esmagar uma rival com exercícios de correcção gramatical. E pergunta, para atrapalhar a outra: «Então a senhora diz ‘à coisas’ ou ‘hão coisas’?». «’Há coisas’, evidentemente», responde a outra, ciosa do seu saber. «Pois diz mal: ‘coisas’ é plural», remata D. Quitéria. Ora o bispo, continua a história – e há com frequência, nestas histórias, um bispo que faz de coro grego –, «ao ouvir o remate da conversa, concluiu para um abade que o acompanhava: ‘É estúpida, mas coerente’».
Ora foi precisamente por ter sido estúpido, mas querer ser coerente, que vim rectificar o erro de «há pouco».

José António Barreiros, in blog «A Revolta das Palavras»

Tuesday, March 01, 2005

Vírgulas a mais e pontinhos a menos

Comparados com os erros de concordância e de sintaxe, ou com os atropelos que por aí se lêem e ouvem do verbo haver, as falhas na pontuação até passam como pormenores. Pelo contrário, são «perturbantes», como se lhes refere o escritor Mário Cláudio, Prémio Pessoa 2004. Perfeccionista da língua, Mário Cláudio é assim descrito, nessa sua faceta, pelo jornalista Valdemar Cruz, num texto que assinou na revista «Actual» do «Expresso»:

Mário Cláudio confessa-se «um leitor compulsivo». Lê tudo e em qualquer lugar. Seja nas inúmeras viagens de carro entre Lisboa e Porto, seja nas férias pela Europa. Se entrar num avião, o que é raro, por preferir evitá-lo, também se refugia nos livros e nas revistas. O desejo de leitura ocorre-lhe a todas as horas, a todos os momentos. Não se vangloria de tanto ler, porque, diz, «a anorexia da leitura é tão grave como a bulimia». Passa os olhos por tudo: jornais, revistas, livros, ensaio, romance. Só não lê livros técnicos, «ou livros científicos impenetráveis». Lê revistas do coração, jornais desportivos e «todas aquelas coisas que as pessoas dizem ser uma perda de tempo». Para o escritor não é um desperdício. Recolhe ali material precioso. Teve a preocupação, por exemplo, de ler autores ou autoras da chamada literatura «sei lá», como Margarida Rebelo Pinto ou Rita Ferro. Para saber o que lá está. Depois de o fazer, concluiu que as autoras fazem parte de um universo exterior ao seu. «Cultivam uma certa frivolidade, mas têm o seu lugar. São escritoras de entretenimento.» O que acha mais censurável nalgumas delas «é a incorrecção linguística». Fica particularmente incomodado com o mau trato da língua, o que, adverte, não significa que não se encontrem manchas nos seus textos, porque no melhor pano cai a nódoa: «De certeza absoluta que há deficiências linguísticas nos meus livros, como há em todos os autores, mas podem é ser mais ou menos graves, mais ou menos gritantes, mais ou menos frequentes.»

Um dos erros mais gritantes, graves e frequentes assinalados por Mário Cláudio é a pontuação, pormenor a que ele dá «importância inimaginável», na descrição do autor do texto que, com a devida vénia, continuamos a transcrever: «Uma das coisas mais difíceis é a vírgula», a qual, garante, «a maior parte das pessoas não sabe utilizar». Até alguns escritores a «usam mal, porque o fazem sem critério e de forma arbitrária». E isso perturba-o.

Se é perturbante o «sem critério» e a «forma arbitrária» de muitos escritores (e alguns bem consagrados...) no uso da pontuação, que dizer das vírgulas a mais e a menos que enxameiam jornais, revistas, legendas e rodapés da TV? Vejamos cinco dos tais casos mais «gritantes, graves e frequentes» a que alude Mário Cláudio para o que aqui nos interessa:

1. O erro crasso da vírgula entre o sujeito e o predicado. É uma das regras básicas da pontuação: a vírgula nunca deve separar frases em contiguidade imediata (sujeito + predicado; verbo + complementos directo e indirecto; o determinante e o determinado). Uma vírgula inadequada pode mudar todo o sentido de uma frase. «Pedro anda» é completamente diferente de «Pedro, anda». A excepção é quando intercalamos complementos, apostos ou, mesmo, outras orações. Por exemplo: «Pedro, embora esteja doente, anda.» Como aconselhava João Carreira Bom, numa excelente resposta no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, na dúvida, façamos como o sal: antes a menos que a mais...

2. A vírgula a seguir ao «mas». As orações adversativas - frases iniciadas pela conjunção coordenativa adversativa mas, por exemplo - só levam vírgula se precedem uma oração intercalar. Por exemplo: «Mas, pensando bem, vou votar no dia 20 de Fevereiro.» Pelo contrário, é um erro (e cada vez mais frequente...) a vírgula a seguir ao mas, só porque há uma pausa ou uma entoação mais enfática na oralidade. Foi este caso recente: «Talvez por isso, a nossa união é uma mera união de Estados e não uns Estados-Unidos. Mas, o mundo está mudar...» Na língua portuguesa, a pontuação é regulada pela lógica. Por isso, a vírgula serve para separar os elementos de uma oração ou de um período que possam ser separáveis com lógica - e não «sem critério e de forma arbitrária», como adverte Mário Cláudio.

3. A vírgula e a conjunção coordenativa «e». A regra é sem vírgula, quando o e liga os elementos de uma só oração («Leonor voltou-se e desfaleceu»). Mas quando a conjunção se repete, usa-se a vírgula («teimoso, e rude, e parvo...». Ou então: a) quando a conjunção e marca, além de uma simples adição, uma ideia de consequência, de oposição ou de surpresa («cumprimentei os pais dela, e juntei-me ao grupo.»; b) quando as orações coordenadas têm sujeitos diferentes («Estávamos num jardim que eu não conhecia, e havia vultos pelos bancos.»). Aplica-se a mesma regra com a conjunção ou.

4. A vírgula com as expressões «aliás», «a saber», «isto é», «ou melhor», «ou seja» e «quer dizer». São as chamadas expressões correctivas ou explicativas. Empregam-se sempre entre vírgulas, quando estão intercaladas («No mês de Fevereiro, ou melhor, depois já das eleições...», ou depois, quando a seguir a um ponto final, a um ponto e vírgula ou a um travessão(«No mês de Fevereiro. Ou melhor, depois já das eleições…»; «No mês de Fevereiro; ou melhor, depois já das eleições...»; «No mês de Fevereiro - ou melhor, depois já das eleições...»).

5. Sem vírgula a ligação «tanto... como». «Tanto o João como o Carlos foram ao teatro.» Só há vírgula se a repetição for além das duas vezes: «Tanto o João, como o Carlos, como a Marta foram ao teatro.»

Nota - Não sendo uma questão de pontuação, uma das deficiências mais gritantes sobre o mau uso da língua é a grafia desleixada de numerais e cardinais, na qual, normalmente, vigora também a (des)regra dos pontinhos a mais e dos pontinhos a menos. Por exemplo, na numeração dos artigos de leis, decretos e portarias (vide «Nova Gramática do Português Contemporâneo», de Celso Cunha e Lindley Cintra, Edições Sá da Costa, Lisboa) deve usar-se o ordinal até nove e o cardinal de dez em diante. Portanto: Artigo 1.º (com ponto) e não «9º» ou «9º.» [mas, por outro lado, nos ângulos grafa-se 9º e nas temperaturas 9ºC (sem ponto)]; e Artigo 10 (dez), Artigo 41 (quarenta e um), etc. A regra é a mesma para os dias da semana: 2.ª (ou 2.ª-feira) e não «2ª» (ou «2ª feira»), 3.ª (ou 3.ª-feira) e não «3ª» (ou «3ª feira»); e por aí adiante.

José Mário Costa

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