Monday, February 28, 2005
«Requiem» pela língua portuguesa
O verbo haver conjugado no plural («Poderão haver alterações na Lei das Rendas»), vírgulas entre o sujeito e o predicado («As notícias da Antena 1, andam nos ouvidos de toda a gente»), erros de ortografia primários (retratar em vez de retractar, a moral trocada sistematicamente pelo moral, vêm em vez de vêem), acentuação negligente («bébé», «... Portas distanciar-se-à»), desrespeito permanente pelas maiúsculas e minúsculas («estado de direito», «sentido de estado»). Sinais alarmantes de como anda o zelo pela língua portuguesa nos «media»... portugueses.
O desinvestimento dos jornais portugueses em bons serviços de revisão e de copidesques - nos casos onde o cuidado com o que se publica em letra de imprensa roçou níveis de excelência, como em tempos no «Expresso» e no «Público» - tem trazido à tona erros calamitosos nada abonatórios para os jornais de referência. Com tal evidência que o assunto foi tema tratado recentemente na coluna do Provedor do Leitor de o «Público».
O verbo haver conjugado no plural («Poderão haver alterações na Lei das Rendas»), vírgulas entre o sujeito e o predicado («As notícias da Antena 1, andam nos ouvidos de toda a gente»), erros de ortografia primários (retratar em vez de retractar, a moral trocada sistematicamente pelo moral, vêm em vez de vêem), acentuação negligente («bébé», «... Portas distanciar-se-à»), desrespeito permanente pelas maiúsculas e minúsculas («estado de direito», «sentido de estado»). Sinais alarmantes de como anda o zelo pela língua portuguesa nos «media»... portugueses.
O desinvestimento dos jornais portugueses em bons serviços de revisão e de copidesques - nos casos onde o cuidado com o que se publica em letra de imprensa roçou níveis de excelência, como em tempos no «Expresso» e no «Público» - tem trazido à tona erros calamitosos nada abonatórios para os jornais de referência. Com tal evidência que o assunto foi tema tratado recentemente na coluna do Provedor do Leitor de o «Público».
Friday, February 25, 2005
«Fazes-me Falta», de Inês Pedrosa
23. Vejo o vento, atiçando a alma das árvores, empurrando nuvens, lavando o céu – mas não o sinto. Tu encolhes o pescoço no casaco para te defenderes dele. Se ao menos eu pudesse dominá-lo, por um segundo que fosse, dar-lhe a forma dos meus dedos mortos e acariciar-te lentamente esses fios brancos, desordenados. Persigo-te para que o tempo exista. Porque andas, e olhas o céu, e o encontras às vezes negro, ou cintilando como um escuro mar de jóias, ou chuvoso, ou ressequido de sol, sei que os dias passam. Mas sei cada vez menos. De repente, o passo torna-se-te elástico e és o meu primeiro namorado, de rabo-de-cavalo, procurando constelações novas num firmamento longínquo. Não consigo ver os contornos desse rapaz no tempo do meu amor por ele, de cabelo curto, e sempre vestido de preto. Mas acontece-me uma vertigem instantânea sobre os corpos amados, acontece-me ter-te diante de mim com o olhar, o gesto, o passo de outros que amei de outras maneiras. Ah, se esta vertigem me tivesse sido dada em vida, até onde eu poderia ter ido.
Abre um livro, por favor. Abre-me The End of the Affair, do Graham Greene, e lê-me aquela passagem em que os dois amantes se afastam depois do primeiro reencontro. Maurice larga a mão de Sarah e caminha para longe, sem virar a cabeça, como se tudo o que há de importante no mundo estivesse nesse outro lugar, inexistente, para onde os seus passos se dirigem. Mas Sarah tosse, e para combater o som cavo dessa tosse repetida ele tenta imaginar uma melodia que pudesse assobiar, mas não consegue. «I have no ear for music», pensa Maurice, penso eu, agora, à beira das lágrimas que rodam por ti no gira-discos. «People can love without seeing each other, can't they», perguntava Sarah, depois de ter desistido de ti para te salvar. Ou de Maurice, é a mesma coisa.
Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz da ausência, podemos tanto que inventávamos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que os personagens de ficção existem tanto como tu. Às vezes, muitas vezes, existem mais do que tu.
Lê-me o fim da Ressurreição, do Tolstoi, diz-me que a Maslova voltou a ser Katiucha, de vestido branco com uma fita azul, entre círios, na noite ardente dessa missa de Páscoa em que Nekliudov a amou na sua inamovível eternidade. Lê-me os textos dessa Maria Zambrano que eu te ensinei a amar, diz-me que «o coração é o vaso da dor» e entorna o teu sangue no meu coração morto que não consegue morrer.
Ainda não aprendeste tudo, demorado amigo. Ainda não aprendeste a matar-me. Os outros arrumaram-me no cemitério luminoso dos telejornais, com loas à minha dignidade. Que a fama lhes seja leve – cá estarei para lhes perdoar em paz esse minuto de glória. Fica tão bem no ecrã, a pena dos mortos. Porém, no fim desse breve espaço publicitário a que chamam vida, todos virão aqui parar. O microfone em torno de ti: «Sei que é um momento difícil, mas disseram-me que era um dos seus melhores amigos.» Confirmaste: «É por isso mesmo que não falo dela. Continuarei apenas a falar com ela.»
Excerto do livro «Fazes-me Falta», de Inês Pedrosa
23. Vejo o vento, atiçando a alma das árvores, empurrando nuvens, lavando o céu – mas não o sinto. Tu encolhes o pescoço no casaco para te defenderes dele. Se ao menos eu pudesse dominá-lo, por um segundo que fosse, dar-lhe a forma dos meus dedos mortos e acariciar-te lentamente esses fios brancos, desordenados. Persigo-te para que o tempo exista. Porque andas, e olhas o céu, e o encontras às vezes negro, ou cintilando como um escuro mar de jóias, ou chuvoso, ou ressequido de sol, sei que os dias passam. Mas sei cada vez menos. De repente, o passo torna-se-te elástico e és o meu primeiro namorado, de rabo-de-cavalo, procurando constelações novas num firmamento longínquo. Não consigo ver os contornos desse rapaz no tempo do meu amor por ele, de cabelo curto, e sempre vestido de preto. Mas acontece-me uma vertigem instantânea sobre os corpos amados, acontece-me ter-te diante de mim com o olhar, o gesto, o passo de outros que amei de outras maneiras. Ah, se esta vertigem me tivesse sido dada em vida, até onde eu poderia ter ido.
Abre um livro, por favor. Abre-me The End of the Affair, do Graham Greene, e lê-me aquela passagem em que os dois amantes se afastam depois do primeiro reencontro. Maurice larga a mão de Sarah e caminha para longe, sem virar a cabeça, como se tudo o que há de importante no mundo estivesse nesse outro lugar, inexistente, para onde os seus passos se dirigem. Mas Sarah tosse, e para combater o som cavo dessa tosse repetida ele tenta imaginar uma melodia que pudesse assobiar, mas não consegue. «I have no ear for music», pensa Maurice, penso eu, agora, à beira das lágrimas que rodam por ti no gira-discos. «People can love without seeing each other, can't they», perguntava Sarah, depois de ter desistido de ti para te salvar. Ou de Maurice, é a mesma coisa.
Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz da ausência, podemos tanto que inventávamos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que os personagens de ficção existem tanto como tu. Às vezes, muitas vezes, existem mais do que tu.
Lê-me o fim da Ressurreição, do Tolstoi, diz-me que a Maslova voltou a ser Katiucha, de vestido branco com uma fita azul, entre círios, na noite ardente dessa missa de Páscoa em que Nekliudov a amou na sua inamovível eternidade. Lê-me os textos dessa Maria Zambrano que eu te ensinei a amar, diz-me que «o coração é o vaso da dor» e entorna o teu sangue no meu coração morto que não consegue morrer.
Ainda não aprendeste tudo, demorado amigo. Ainda não aprendeste a matar-me. Os outros arrumaram-me no cemitério luminoso dos telejornais, com loas à minha dignidade. Que a fama lhes seja leve – cá estarei para lhes perdoar em paz esse minuto de glória. Fica tão bem no ecrã, a pena dos mortos. Porém, no fim desse breve espaço publicitário a que chamam vida, todos virão aqui parar. O microfone em torno de ti: «Sei que é um momento difícil, mas disseram-me que era um dos seus melhores amigos.» Confirmaste: «É por isso mesmo que não falo dela. Continuarei apenas a falar com ela.»
Excerto do livro «Fazes-me Falta», de Inês Pedrosa
Sunday, February 13, 2005
Kasparov «vs» computador
UMA HISTÓRIA MAL CONTADA
Há determinadas categorias desportivas que teimam em «esconder-se» quando abordamos a temática do desporto na sua generalidade. O xadrez é, seguramente, uma delas, apesar de ser considerado (pelos entendidos na matéria) o jogo mais «fascinante» de todos os tempos.
«Mas porque será que aquelas pessoas ficam ali a olhar para aquelas figurinhas em cima de um tabuleiro? Não devem ser todos maluquinhos! Aquilo é capaz de ser giro...»
É vulgar ouvir este comentário. As «figurinhas» dão pelo nome de «peões», «cavalos», «bispos», «torres», «rainhas» e «reis», protagonistas principais de cativantes «batalhas» travadas num campo, em forma de tabuleiro, composto por 64 pequenos quadradinhos.
O fascínio pelo xadrez tem atravessado séculos, alimentado por estratégias, tácticas e técnicas de jogo em busca de um objectivo final: o «xeque-mate». Personalidades como Napoleão Bonaparte integraram o rol de adeptos incondicionais das virtudes do xadrez, um jogo essencialmente composto pela excelência do raciocínio e da capacidade de superar o oponente.
Mas nem por isso, e ao contrário do que seria suposto, os computadores conseguem vincar a sua aparente supremacia no domínio do raciocínio sobre o ser humano. E a partir do momento em que um miúdo de 15 anos se deu ao luxo de derrotar um campeão de nome Kasparov, é caso para acreditar que, de facto, estamos perante um jogo que... talvez seja algo mais que um simples «jogo».
Kasparov empatou com um computador potente, mas perdeu com Radjabov, um miúdo de 15 anos. Qual a explicação? «Hoje em dia existe uma ampla e acessível base de informação, aliada ao facto de estes jovens valores se treinarem seis a oito horas diárias e de terem técnicos particulares, o que faz com que a aprendizagem seja cada vez mais rápida. O que Kasparov aprendeu ao longo de anos, Radjabov assimilou em meses. As bases tácticas, estratégicas e técnicas do xadrez apreendem-se mais rapidamente e, a partir daqui, os jogadores distinguem-se pela criatividade e pelas novidades que apresentam», defende o meu amigo Ricardo Pais, xadrezista federado e apaixonado por este desporto «fascinante».
E quanto aos «matchs» Humano «vs» Máquina? «Estão muito mal contados. Não se percebe bem se Kasparov recebe para não 'humilhar' a máquina ou se para fazer com que esta evolua. Para ganhar é que não recebe, de certeza, pois já são vezes a mais em que tem posições empatadas teoricamente e insiste em abandonar. Está, nitidamente, a fazer render o peixe...», sustenta Ricardo Pais.
UMA HISTÓRIA MAL CONTADA
Há determinadas categorias desportivas que teimam em «esconder-se» quando abordamos a temática do desporto na sua generalidade. O xadrez é, seguramente, uma delas, apesar de ser considerado (pelos entendidos na matéria) o jogo mais «fascinante» de todos os tempos.
«Mas porque será que aquelas pessoas ficam ali a olhar para aquelas figurinhas em cima de um tabuleiro? Não devem ser todos maluquinhos! Aquilo é capaz de ser giro...»
É vulgar ouvir este comentário. As «figurinhas» dão pelo nome de «peões», «cavalos», «bispos», «torres», «rainhas» e «reis», protagonistas principais de cativantes «batalhas» travadas num campo, em forma de tabuleiro, composto por 64 pequenos quadradinhos.
O fascínio pelo xadrez tem atravessado séculos, alimentado por estratégias, tácticas e técnicas de jogo em busca de um objectivo final: o «xeque-mate». Personalidades como Napoleão Bonaparte integraram o rol de adeptos incondicionais das virtudes do xadrez, um jogo essencialmente composto pela excelência do raciocínio e da capacidade de superar o oponente.
Mas nem por isso, e ao contrário do que seria suposto, os computadores conseguem vincar a sua aparente supremacia no domínio do raciocínio sobre o ser humano. E a partir do momento em que um miúdo de 15 anos se deu ao luxo de derrotar um campeão de nome Kasparov, é caso para acreditar que, de facto, estamos perante um jogo que... talvez seja algo mais que um simples «jogo».
Kasparov empatou com um computador potente, mas perdeu com Radjabov, um miúdo de 15 anos. Qual a explicação? «Hoje em dia existe uma ampla e acessível base de informação, aliada ao facto de estes jovens valores se treinarem seis a oito horas diárias e de terem técnicos particulares, o que faz com que a aprendizagem seja cada vez mais rápida. O que Kasparov aprendeu ao longo de anos, Radjabov assimilou em meses. As bases tácticas, estratégicas e técnicas do xadrez apreendem-se mais rapidamente e, a partir daqui, os jogadores distinguem-se pela criatividade e pelas novidades que apresentam», defende o meu amigo Ricardo Pais, xadrezista federado e apaixonado por este desporto «fascinante».
E quanto aos «matchs» Humano «vs» Máquina? «Estão muito mal contados. Não se percebe bem se Kasparov recebe para não 'humilhar' a máquina ou se para fazer com que esta evolua. Para ganhar é que não recebe, de certeza, pois já são vezes a mais em que tem posições empatadas teoricamente e insiste em abandonar. Está, nitidamente, a fazer render o peixe...», sustenta Ricardo Pais.