Monday, December 27, 2004
Um texto inédito de José Saramago, intitulado «Informação - A quadratura do círculo», abre o número 20 da «JJ - Jornalismo e Jornalistas», com o qual a revista completa cinco anos de publicação. O texto de Saramago serviu de base a uma conferência proferida pelo Prémio Nobel durante um seminário organizado pela Agência Efe, em Santander, no âmbito dos Cursos de Verão da Universidade Internacional Menendez Pelayo. Com a devida vénia, aqui transcrevo o artigo de José Saramago:
«Informação - A quadratura do círculo»
Da informação objectiva pode dizer-se o mesmo que da quadratura do círculo (redução a um quadrado de área equivalente): que é uma impossibilidade.
A impossibilidade da quadratura do círculo mediante a régua e o compasso foi demonstrada por Ferdinand von Lindemann, em 1882.
Nesta minha comunicação tomarei a quadratura do círculo como a metáfora de uma objectividade também ela impossível de alcançar.
Se é assim, como creio, não temos mais que subjectividade em seus múltiplos aspectos: subjectividades ideológicas (incluindo as religiosas), subjectividades de classe, subjectividades de interesses pessoais, subjectividades de grupo, subjectividades de sentimentos, subjectividades culturais, subjectividades de costumes, etc., etc.
Factos são factos, ouvimos dizer frequentemente, como se de uma verdade irrespondível se tratasse, portanto deduzir-se-á que a objectividade consistiria, pura e simplesmente, em descrevê-los. Porém, que seria descrever, pura e simplesmente, um facto, quando a própria linguagem é um dos mais acabados exemplos de subjectividade?
Uma imagem limita-se a mostrar, portanto parece apresentar-se com um grau de objectividade maior que a palavra. Mas todos sabemos que determinados factores, como a luz, o ângulo de focagem ou a lente utilizada, podem subjectivar o que nos está a ser mostrado.
Cada facto resulta de factos anteriores, de cada facto resultarão inevitavelmente outros factos. A isto chamamos causas e efeitos. Cada facto contém um ou mais efeitos do passado e projecta uma ou mais causas para o futuro. Uma inventariação completa das causas e efeitos que envolvem o planeta estaria fora do alcance das capacidades humanas, incluindo as do mais poderoso computador existente ou a existir.
Considero o ponto de vista como uma questão fundamental em tudo quanto se refere à informação. A aparência física das constelações no espaço representa um caso típico de «visão» humana subjectiva. Observado de fora do sistema solar, o «desenho» da Ursa Maior seria muito provavelmente diferente. As estrelas não estão à mesma distância de nós, o que julgamos ver é, de alguma maneira, uma ilusão de óptica. Ao mudar o ponto donde se vê, mudará igualmente aquilo que é visto.
Porque pensamos o que pensamos? Porque pensamos como pensamos? Uma das mais interessantes e problemáticas definições de pensamento é aquela que diz ser ele o «conjunto de ideias próprias de uma pessoa ou colectividade». Isto significa que pensamos o que há para pensar, que não podemos pensar fora do pensado. Pensamos o que a época em que vivemos pensa e é na linguagem dessa mesma época que expressamos a parte que do pensamento comum vamos conseguindo captar e assimilar. Ao legítimo argumento de que é possível pensar contra o que está, sempre se poderá responder que o que está, não se limita a estar, também nos marca o espaço do pensar...
Toda a informação é subjectiva e não pode evitar sê-lo. Subjectiva na origem (segundo a visão, particular ou induzida, que tivermos do facto que vamos informar), subjectiva na transmissão (por influência dos canais que o facto comunicado tiver de percorrer), subjectiva na recepção (não há exagero em dizer que a mesma mensagem terá tantos entendimentos quantos vierem a ser os seus receptores).
Todos sabemos que as coisas são assim e sempre assim foram, mas, enquanto o mundo for mundo, continuaremos a proclamar as nossas rectas objectividades e a recriminar os outros pelas suas suspeitosas subjectividades...
Que sentido real tem a expressão criadores de opinião? Em nome de quê, ou de quem, crê alguém que está capacitado para expressar opiniões destinadas não só a mero consumo público, mas também à formação das pessoas? Que espaço de liberdade resta ao consumidor de informação para poder elaborar opiniões que lhe sejam próprias? E quando supuser que está habilitado a expressá-las, serão elas realmente suas? Não serão, pelo contrário, na maior parte dos casos, um conjunto mais ou menos coerente de fragmentos das ideias subjectivas daqueles criadores de opinião que se habituou a ler ou a escutar?
Imaginemos dois jornais, um com posições e análises do que designamos por esquerda, outro com posições e análises do que chamamos direita. Os leitores de qualquer desses jornais tenderão a adoptar opiniões distintas e não raro contrárias àquelas que os leitores do jornal competidor defendem. Parece não se aperceberem, uns e outros, de que essas opiniões, no fundamental, não são a consequência lógica e natural das suas próprias reflexões, mas da acção de penetração que os denominados criadores de opinião vieram operando no seu espírito.
Evidentemente, ter opiniões a partir do nada não é possível. A questão não se encontra, portanto, no facto iniludível de que as nossas opiniões são o resultado da rede de informações em que nos movemos e orientamos, tal como a aranha se vai movendo e orientando sobre a teia. (Curiosamente, a mesma aranha que é produtora da teia não pode, salvo excepções, subsistir fora dela... A nossa teia chama-se opinião.)
A questão encontra-se, sim, no sector de afinidades subjectivas em que preferentemente circulamos e em que nos reconhecemos como nós próprios. É interessante notar como mais facilmente se muda de partido político que de clube desportivo... Ao mudar de partido político, a pessoa, se lhe perguntarem pelos motivos da mudança, apresentará razões que pelo menos aspirarão a ser objectivas, ao passo que o adepto do clube desportivo, imerso como está numa subjectividade total, não terá senão razões de ordem subjectiva para expressar. Isto no caso, não de todo provável, de ser capaz de formulá-las de um modo inteligível.
Tem-se falado muito das perigosas relações de cumplicidade que com demasiada frequência se observam entre a imprensa e os partidos políticos, essa espécie de concubinato que acabou por tornar certos jornais em órgãos difusores das mensagens e dos interesses do partido que, por uma razão ou outra, lhes é simpático. Porém, fala-se menos, ou nada, da corrente sanguínea, do cordão umbilical que geralmente liga a imprensa aos grandes grupos económicos, à banca, à grande indústria, ao grande comércio. Em algum caso, a simples ameaça de retirada da publicidade é suficiente para que nenhum jornal ouse denunciar abusos notórios, particularmente os que são cometidos na área laboral. Não deverá esquecer-se, a propósito, a velha frase que diz que «os jornais servem para vender clientes aos anunciantes». E isto é tão certo para as caríssimas publicidades de página inteira como para os pequenos anúncios de contactos pessoais...
Também de vez em quando se reivindica a sonhada independência do jornalista. Trata-se de uma ficção tecida de boas intenções, com a qual se pretende amortecer os efeitos negativos da consciência infeliz no espírito dos profissionais da informação. Não sendo nenhum trabalho realmente independente, o dos jornalistas não podia ser excepção. Entre o chefe, que está ao lado, e o patrão, tantas vezes invisível, o jornalista leva o melhor da sua vida a apalpar o terreno instável que o sustém e a perguntar-se se estará fora ou dentro da verdade do dia. Creio que mais útil que o sempiterno e frustrante debate sobre uma mirífica independência do jornalista, seria examinar as franjas de independência relativa que lhe são consentidas, sem esquecer que eventuais aplausos internos dependerão, em muitos casos, mais de factores extrajornalísticos do que da exactidão de uma informação ou de uma análise. O camaleonismo jornalístico, peste maior do nosso tempo, tem no que acabo de referir algumas das suas mais nefastas raízes. O cidadão comum expressa as opiniões do seu tempo, certos jornalistas talvez preferissem não ter nenhuma. Ser-lhes-ia menos doloroso que serem obrigados a ter aquela que a outros convém.
Falei da exactidão da informação. Permita-se-me, a propósito, um exemplo. Já se tornou um lugar-comum dizer que uma imagem vale por mil palavras. É uma ideia errada convertida em tópico quase indiscutível. As imagens necessitam muitas vezes de um texto que as explique, quanto mais não seja para nos obrigar a reflectir sobre o sentido de algumas daquelas com que a televisão se alimenta e nos alimenta até ao paroxismo. Pudemos comprová-lo há anos quando assistimos, em directo, à queda de um ciclista numa das etapas da Volta à França. Assistimos ao acidente como se tivéssemos visto, numa rua, uma pessoa a ser atropelada por um automóvel. Com a diferença de que o tal automóvel só teria atropelado a pessoa uma vez... Com a diferença de que, como testemunha do acontecimento, não poderíamos – salvo se fôssemos sádicos – fazer voltar atrás o automóvel para repetir a cena do acidente... Ora, na televisão pudemos ver e rever trinta vezes a queda do infortunado ciclista. Graças às mil possibilidades da técnica, vimo-lo com zoom, sem zoom, em plongée, em contre-plongée, de um ângulo, do ângulo oposto, em travelling, de frente, de perfil. E também, interminável, ao ralenti... Vimos o corredor a cair da bicicleta, vimos a cara a aproximar-se pouco a pouco do chão, tocar o asfalto, torcer-se de dor...
De cada vez ficávamos sabendo mais das circunstâncias da terrível queda, do como e do porquê do acidente, mas a nossa sensibilidade ia-se tornando indiferente, cada vez mais difícil de penetrar. Olhávamos o que se passava com um distanciamento de cinéfilo dissecando uma sequência de um filme de acção. As repetições tinham acabado por matar a emoção.
A informação só nos tornará mais avisados e mais sábios se servir para nos aproximar dos outros seres humanos. Ora, com a possibilidade de aceder, de longe, a todos os documentos e materiais informativos de que precisamos, o risco de desumanização está a aumentar. E também o risco de ignorância. Doravante a chave da cultura não residirá na experiência e no saber, mas na habilidade para procurar a informação através dos múltiplos canais oferecidos pela Internet. Poder-se-á ignorar o mundo, não saber em que universo social, económico e político se vive, e ao mesmo tempo dispor de toda a informação possível. A comunicação deixa de ser uma forma de comunhão.
Viremos a deplorar o fim da comunicação real, directa, de pessoa a pessoa? A nostalgia da velha biblioteca talvez não tarde: sair de casa, fazer o trajecto, entrar, cumprimentar, sentar-se, pedir um livro, segurá-lo nas mãos, sentir o trabalho do impressor, do encadernador, perceber o rasto dos leitores que nos precederam, as suas mãos, os dedos que viraram as páginas, tocar os sinais de uma humanidade que por elas passeou o olhar, de geração em geração...
Vemos concretizar-se o cenário de pesadelo anunciado pela ficção-científica: alguém encerrado no seu apartamento, isolado de todos e de tudo, na mais angustiosa solidão, mas ligado por internet e em comunicação com todo o planeta. O fim do mundo material, da experiência, do contacto directo. A dissolução dos corpos... É a realidade virtual. Mas a realidade virtual, recordemo-lo, não nasceu ontem, tem mais de um milhão de anos se, como é provável, o Homo erectus já sonhava...
Impressionados, intimidados pelo discurso modernista e tecnicista, os cidadãos, na sua maior parte, capitulam. Aceitam adaptar-se ao novo mundo que nos anunciam como inevitável. Renunciaram aos seus direitos e aos seus deveres. Em particular, ao dever de protestar, de insurgir-se, de rebelar-se. Como se a exploração tivesse desaparecido e a manipulação dos espíritos tivesse passado a ser um negócio de anjos.
Disse, no princípio desta comunicação, que, metaforicamente, a informação, tal como a quadratura do círculo, é impossível. No caso do círculo a culpa tem-na aquele malvado número pi, esse 3,14 que já foi calculado com até um milhão de algarismos decimais e que, para nosso desespero, se prolonga infinitamente. Também para a informação há um número pi, mas esse exige-nos que todos os dias lhes acrescentemos decimais. Cada um deles representará mais uma parcela de verdade, de responsabilidade, de respeito, de ética, de dignidade. Já sabemos que os números pis, tanto o do círculo como o da informação, não têm fim, mas penso ser vosso dever e vosso signo avançar sem pausa nem descanso por essa linha infinita. É o andar que faz o caminho, disse Antonio Machado, que foi mestre do humano. Eu, que ao seu lado não passo de aprendiz, contento-me com desejar-vos uma boa viagem.
«Informação - A quadratura do círculo»
Da informação objectiva pode dizer-se o mesmo que da quadratura do círculo (redução a um quadrado de área equivalente): que é uma impossibilidade.
A impossibilidade da quadratura do círculo mediante a régua e o compasso foi demonstrada por Ferdinand von Lindemann, em 1882.
Nesta minha comunicação tomarei a quadratura do círculo como a metáfora de uma objectividade também ela impossível de alcançar.
Se é assim, como creio, não temos mais que subjectividade em seus múltiplos aspectos: subjectividades ideológicas (incluindo as religiosas), subjectividades de classe, subjectividades de interesses pessoais, subjectividades de grupo, subjectividades de sentimentos, subjectividades culturais, subjectividades de costumes, etc., etc.
Factos são factos, ouvimos dizer frequentemente, como se de uma verdade irrespondível se tratasse, portanto deduzir-se-á que a objectividade consistiria, pura e simplesmente, em descrevê-los. Porém, que seria descrever, pura e simplesmente, um facto, quando a própria linguagem é um dos mais acabados exemplos de subjectividade?
Uma imagem limita-se a mostrar, portanto parece apresentar-se com um grau de objectividade maior que a palavra. Mas todos sabemos que determinados factores, como a luz, o ângulo de focagem ou a lente utilizada, podem subjectivar o que nos está a ser mostrado.
Cada facto resulta de factos anteriores, de cada facto resultarão inevitavelmente outros factos. A isto chamamos causas e efeitos. Cada facto contém um ou mais efeitos do passado e projecta uma ou mais causas para o futuro. Uma inventariação completa das causas e efeitos que envolvem o planeta estaria fora do alcance das capacidades humanas, incluindo as do mais poderoso computador existente ou a existir.
Considero o ponto de vista como uma questão fundamental em tudo quanto se refere à informação. A aparência física das constelações no espaço representa um caso típico de «visão» humana subjectiva. Observado de fora do sistema solar, o «desenho» da Ursa Maior seria muito provavelmente diferente. As estrelas não estão à mesma distância de nós, o que julgamos ver é, de alguma maneira, uma ilusão de óptica. Ao mudar o ponto donde se vê, mudará igualmente aquilo que é visto.
Porque pensamos o que pensamos? Porque pensamos como pensamos? Uma das mais interessantes e problemáticas definições de pensamento é aquela que diz ser ele o «conjunto de ideias próprias de uma pessoa ou colectividade». Isto significa que pensamos o que há para pensar, que não podemos pensar fora do pensado. Pensamos o que a época em que vivemos pensa e é na linguagem dessa mesma época que expressamos a parte que do pensamento comum vamos conseguindo captar e assimilar. Ao legítimo argumento de que é possível pensar contra o que está, sempre se poderá responder que o que está, não se limita a estar, também nos marca o espaço do pensar...
Toda a informação é subjectiva e não pode evitar sê-lo. Subjectiva na origem (segundo a visão, particular ou induzida, que tivermos do facto que vamos informar), subjectiva na transmissão (por influência dos canais que o facto comunicado tiver de percorrer), subjectiva na recepção (não há exagero em dizer que a mesma mensagem terá tantos entendimentos quantos vierem a ser os seus receptores).
Todos sabemos que as coisas são assim e sempre assim foram, mas, enquanto o mundo for mundo, continuaremos a proclamar as nossas rectas objectividades e a recriminar os outros pelas suas suspeitosas subjectividades...
Que sentido real tem a expressão criadores de opinião? Em nome de quê, ou de quem, crê alguém que está capacitado para expressar opiniões destinadas não só a mero consumo público, mas também à formação das pessoas? Que espaço de liberdade resta ao consumidor de informação para poder elaborar opiniões que lhe sejam próprias? E quando supuser que está habilitado a expressá-las, serão elas realmente suas? Não serão, pelo contrário, na maior parte dos casos, um conjunto mais ou menos coerente de fragmentos das ideias subjectivas daqueles criadores de opinião que se habituou a ler ou a escutar?
Imaginemos dois jornais, um com posições e análises do que designamos por esquerda, outro com posições e análises do que chamamos direita. Os leitores de qualquer desses jornais tenderão a adoptar opiniões distintas e não raro contrárias àquelas que os leitores do jornal competidor defendem. Parece não se aperceberem, uns e outros, de que essas opiniões, no fundamental, não são a consequência lógica e natural das suas próprias reflexões, mas da acção de penetração que os denominados criadores de opinião vieram operando no seu espírito.
Evidentemente, ter opiniões a partir do nada não é possível. A questão não se encontra, portanto, no facto iniludível de que as nossas opiniões são o resultado da rede de informações em que nos movemos e orientamos, tal como a aranha se vai movendo e orientando sobre a teia. (Curiosamente, a mesma aranha que é produtora da teia não pode, salvo excepções, subsistir fora dela... A nossa teia chama-se opinião.)
A questão encontra-se, sim, no sector de afinidades subjectivas em que preferentemente circulamos e em que nos reconhecemos como nós próprios. É interessante notar como mais facilmente se muda de partido político que de clube desportivo... Ao mudar de partido político, a pessoa, se lhe perguntarem pelos motivos da mudança, apresentará razões que pelo menos aspirarão a ser objectivas, ao passo que o adepto do clube desportivo, imerso como está numa subjectividade total, não terá senão razões de ordem subjectiva para expressar. Isto no caso, não de todo provável, de ser capaz de formulá-las de um modo inteligível.
Tem-se falado muito das perigosas relações de cumplicidade que com demasiada frequência se observam entre a imprensa e os partidos políticos, essa espécie de concubinato que acabou por tornar certos jornais em órgãos difusores das mensagens e dos interesses do partido que, por uma razão ou outra, lhes é simpático. Porém, fala-se menos, ou nada, da corrente sanguínea, do cordão umbilical que geralmente liga a imprensa aos grandes grupos económicos, à banca, à grande indústria, ao grande comércio. Em algum caso, a simples ameaça de retirada da publicidade é suficiente para que nenhum jornal ouse denunciar abusos notórios, particularmente os que são cometidos na área laboral. Não deverá esquecer-se, a propósito, a velha frase que diz que «os jornais servem para vender clientes aos anunciantes». E isto é tão certo para as caríssimas publicidades de página inteira como para os pequenos anúncios de contactos pessoais...
Também de vez em quando se reivindica a sonhada independência do jornalista. Trata-se de uma ficção tecida de boas intenções, com a qual se pretende amortecer os efeitos negativos da consciência infeliz no espírito dos profissionais da informação. Não sendo nenhum trabalho realmente independente, o dos jornalistas não podia ser excepção. Entre o chefe, que está ao lado, e o patrão, tantas vezes invisível, o jornalista leva o melhor da sua vida a apalpar o terreno instável que o sustém e a perguntar-se se estará fora ou dentro da verdade do dia. Creio que mais útil que o sempiterno e frustrante debate sobre uma mirífica independência do jornalista, seria examinar as franjas de independência relativa que lhe são consentidas, sem esquecer que eventuais aplausos internos dependerão, em muitos casos, mais de factores extrajornalísticos do que da exactidão de uma informação ou de uma análise. O camaleonismo jornalístico, peste maior do nosso tempo, tem no que acabo de referir algumas das suas mais nefastas raízes. O cidadão comum expressa as opiniões do seu tempo, certos jornalistas talvez preferissem não ter nenhuma. Ser-lhes-ia menos doloroso que serem obrigados a ter aquela que a outros convém.
Falei da exactidão da informação. Permita-se-me, a propósito, um exemplo. Já se tornou um lugar-comum dizer que uma imagem vale por mil palavras. É uma ideia errada convertida em tópico quase indiscutível. As imagens necessitam muitas vezes de um texto que as explique, quanto mais não seja para nos obrigar a reflectir sobre o sentido de algumas daquelas com que a televisão se alimenta e nos alimenta até ao paroxismo. Pudemos comprová-lo há anos quando assistimos, em directo, à queda de um ciclista numa das etapas da Volta à França. Assistimos ao acidente como se tivéssemos visto, numa rua, uma pessoa a ser atropelada por um automóvel. Com a diferença de que o tal automóvel só teria atropelado a pessoa uma vez... Com a diferença de que, como testemunha do acontecimento, não poderíamos – salvo se fôssemos sádicos – fazer voltar atrás o automóvel para repetir a cena do acidente... Ora, na televisão pudemos ver e rever trinta vezes a queda do infortunado ciclista. Graças às mil possibilidades da técnica, vimo-lo com zoom, sem zoom, em plongée, em contre-plongée, de um ângulo, do ângulo oposto, em travelling, de frente, de perfil. E também, interminável, ao ralenti... Vimos o corredor a cair da bicicleta, vimos a cara a aproximar-se pouco a pouco do chão, tocar o asfalto, torcer-se de dor...
De cada vez ficávamos sabendo mais das circunstâncias da terrível queda, do como e do porquê do acidente, mas a nossa sensibilidade ia-se tornando indiferente, cada vez mais difícil de penetrar. Olhávamos o que se passava com um distanciamento de cinéfilo dissecando uma sequência de um filme de acção. As repetições tinham acabado por matar a emoção.
A informação só nos tornará mais avisados e mais sábios se servir para nos aproximar dos outros seres humanos. Ora, com a possibilidade de aceder, de longe, a todos os documentos e materiais informativos de que precisamos, o risco de desumanização está a aumentar. E também o risco de ignorância. Doravante a chave da cultura não residirá na experiência e no saber, mas na habilidade para procurar a informação através dos múltiplos canais oferecidos pela Internet. Poder-se-á ignorar o mundo, não saber em que universo social, económico e político se vive, e ao mesmo tempo dispor de toda a informação possível. A comunicação deixa de ser uma forma de comunhão.
Viremos a deplorar o fim da comunicação real, directa, de pessoa a pessoa? A nostalgia da velha biblioteca talvez não tarde: sair de casa, fazer o trajecto, entrar, cumprimentar, sentar-se, pedir um livro, segurá-lo nas mãos, sentir o trabalho do impressor, do encadernador, perceber o rasto dos leitores que nos precederam, as suas mãos, os dedos que viraram as páginas, tocar os sinais de uma humanidade que por elas passeou o olhar, de geração em geração...
Vemos concretizar-se o cenário de pesadelo anunciado pela ficção-científica: alguém encerrado no seu apartamento, isolado de todos e de tudo, na mais angustiosa solidão, mas ligado por internet e em comunicação com todo o planeta. O fim do mundo material, da experiência, do contacto directo. A dissolução dos corpos... É a realidade virtual. Mas a realidade virtual, recordemo-lo, não nasceu ontem, tem mais de um milhão de anos se, como é provável, o Homo erectus já sonhava...
Impressionados, intimidados pelo discurso modernista e tecnicista, os cidadãos, na sua maior parte, capitulam. Aceitam adaptar-se ao novo mundo que nos anunciam como inevitável. Renunciaram aos seus direitos e aos seus deveres. Em particular, ao dever de protestar, de insurgir-se, de rebelar-se. Como se a exploração tivesse desaparecido e a manipulação dos espíritos tivesse passado a ser um negócio de anjos.
Disse, no princípio desta comunicação, que, metaforicamente, a informação, tal como a quadratura do círculo, é impossível. No caso do círculo a culpa tem-na aquele malvado número pi, esse 3,14 que já foi calculado com até um milhão de algarismos decimais e que, para nosso desespero, se prolonga infinitamente. Também para a informação há um número pi, mas esse exige-nos que todos os dias lhes acrescentemos decimais. Cada um deles representará mais uma parcela de verdade, de responsabilidade, de respeito, de ética, de dignidade. Já sabemos que os números pis, tanto o do círculo como o da informação, não têm fim, mas penso ser vosso dever e vosso signo avançar sem pausa nem descanso por essa linha infinita. É o andar que faz o caminho, disse Antonio Machado, que foi mestre do humano. Eu, que ao seu lado não passo de aprendiz, contento-me com desejar-vos uma boa viagem.
Wednesday, December 22, 2004
«Natal amargo atrás das grades»
Apetece-me escrever assim um «post»: «Gozem o Natal o melhor possível, sejam todos muito felizes, mas deixem-me em paz.» Em paz nesta espécie de angústia em prata viva que sempre me invade quando oiço a palavra Natal. Tento descobrir esta aversão ao Menino Jesus e julgo ter encontrado a «chave», mas isso são contas de outro rosário...
Seja como for, não sou insensível a gestos de solidariedade, mas é lamentável que só aconteçam no Natal, enquanto no resto do ano reina a hipocrisia por parte de boa gente «civilizada» e bem-falante.
A propósito de solidariedade. Um destes dias fui destacado para fazer uma reportagem na prisão de Caxias, onde estão detidos 50 cidadãos angolanos, a maioria a cumprir prisão preventiva, portanto, ainda sem culpa formada. Nunca tinha entrado numa prisão e a ideia de visitar Caxias agradou-me, até pelo facto de por lá terem passado muitos presos políticos que admirei.
Cumpridas as rigorosas formalidades de entrada, lá fomos para uma sala improvisada, onde decorreu a festa destinada aos presos angolanos. Alheei-me do protocolo e estabeleci interessante conversa com uma funcionária da prisão (assistente social), que me falou de uma realidade que bem conhece.
Como afirmou uma alta personalidade que um dia visitou Nelson Mandela, citada pelo embaixador angolano, «é nas prisões que melhor se conhece o sabor da liberdade». Nada mais certo, mas eu não queria ficar nem uma horinha isolado naquelas paredes frias e fortificadas, com aquelas janelinhas para respirar... E, no entanto, muitos portugueses como eu ali cumpriram penas pesadas, «só» pelo facto de terem lutado pela liberdade. Homens de coragem, esquecidos, neste país «sucessivamente adiado».
Já mais familiarizado com o ambiente, passei à fase seguinte, ou seja, ao contacto directo com os reclusos. Como quem não quer a coisa, convidei três deles a deixar o salão de festas e fomos conversar para o enorme corredor. Comecei a aperceber-me de uma realidade à qual não era totalmente alheio: há excesso de prisão preventiva em Portugal. A maioria daqueles angolanos está detida sem culpa formada, alguns há mais de um ano, quando o Código Penal prevê seis meses, em caso de arguido detido.
Por outro lado, olhei as caras dos reclusos e uma boa parte era adolescente. Como poderiam estar ali, a cumprir prisão preventiva, juntamente com adultos e em ambiente nada aconselhável? Naturalmente, como não sou especialista em leis, socorri-me do advogado Isaac Paulo, que me confirmou aquilo de que eu já suspeitava: as leis não estão a ser cumpridas em Portugal.
Tudo isto para dizer o seguinte: fui a Caxias incumbido de fazer uma reportagem «doce» de Natal e vim de lá com outro tipo de trabalho jornalístico. Saiu-me um Natal «amargo» e a reportagem vai ser publicada no próximo sábado (dia de Natal) em Angola, no suplemento «Libero».
Desculpem qualquer coisinha! E tenham o melhor Natal possível!
Apetece-me escrever assim um «post»: «Gozem o Natal o melhor possível, sejam todos muito felizes, mas deixem-me em paz.» Em paz nesta espécie de angústia em prata viva que sempre me invade quando oiço a palavra Natal. Tento descobrir esta aversão ao Menino Jesus e julgo ter encontrado a «chave», mas isso são contas de outro rosário...
Seja como for, não sou insensível a gestos de solidariedade, mas é lamentável que só aconteçam no Natal, enquanto no resto do ano reina a hipocrisia por parte de boa gente «civilizada» e bem-falante.
A propósito de solidariedade. Um destes dias fui destacado para fazer uma reportagem na prisão de Caxias, onde estão detidos 50 cidadãos angolanos, a maioria a cumprir prisão preventiva, portanto, ainda sem culpa formada. Nunca tinha entrado numa prisão e a ideia de visitar Caxias agradou-me, até pelo facto de por lá terem passado muitos presos políticos que admirei.
Cumpridas as rigorosas formalidades de entrada, lá fomos para uma sala improvisada, onde decorreu a festa destinada aos presos angolanos. Alheei-me do protocolo e estabeleci interessante conversa com uma funcionária da prisão (assistente social), que me falou de uma realidade que bem conhece.
Como afirmou uma alta personalidade que um dia visitou Nelson Mandela, citada pelo embaixador angolano, «é nas prisões que melhor se conhece o sabor da liberdade». Nada mais certo, mas eu não queria ficar nem uma horinha isolado naquelas paredes frias e fortificadas, com aquelas janelinhas para respirar... E, no entanto, muitos portugueses como eu ali cumpriram penas pesadas, «só» pelo facto de terem lutado pela liberdade. Homens de coragem, esquecidos, neste país «sucessivamente adiado».
Já mais familiarizado com o ambiente, passei à fase seguinte, ou seja, ao contacto directo com os reclusos. Como quem não quer a coisa, convidei três deles a deixar o salão de festas e fomos conversar para o enorme corredor. Comecei a aperceber-me de uma realidade à qual não era totalmente alheio: há excesso de prisão preventiva em Portugal. A maioria daqueles angolanos está detida sem culpa formada, alguns há mais de um ano, quando o Código Penal prevê seis meses, em caso de arguido detido.
Por outro lado, olhei as caras dos reclusos e uma boa parte era adolescente. Como poderiam estar ali, a cumprir prisão preventiva, juntamente com adultos e em ambiente nada aconselhável? Naturalmente, como não sou especialista em leis, socorri-me do advogado Isaac Paulo, que me confirmou aquilo de que eu já suspeitava: as leis não estão a ser cumpridas em Portugal.
Tudo isto para dizer o seguinte: fui a Caxias incumbido de fazer uma reportagem «doce» de Natal e vim de lá com outro tipo de trabalho jornalístico. Saiu-me um Natal «amargo» e a reportagem vai ser publicada no próximo sábado (dia de Natal) em Angola, no suplemento «Libero».
Desculpem qualquer coisinha! E tenham o melhor Natal possível!
Thursday, December 09, 2004
Blogosfera vigia quarto poder
O jornalismo «está num processo de redefinição» e os blogues, como «nova modalidade de expressão», são «uma via através da qual mais gente pode tomar a palavra». Enquanto espaços de opinião e reflexão, os blogues constituem uma espécie de «quinto poder», na «presunção de que o quarto poder foi perdendo capacidade de vigiar os outros poderes».
Esta ideia foi defendida por Manuel Pinto, provedor do «Jornal de Notícias», jornalista, investigador e docente da Universidade do Minho, num colóquio organizado pela Associação Gabinete de Imprensa de Guimarães, subordinado ao tema «O papel dos blogues no jornalismo actual», com a participação de Fernando Zamith (Agência Lusa), João Paulo Meneses (TSF) e Elisabete Barbosa (docente universitária e co-autora do livro «Weblogues - Diário de Bordo».
Quando se discute se os weblogues são jornalismo, as opiniões divergem. Manuel Pinto acha que não, embora os blogues contemplem aquilo que define por «metajornalismo», e se assumam como o formato que «admite a informação, a análise, o comentário e a opinião». Apesar de se constituírem como «a ferramenta ideal para a prática jornalística», segundo Fernando Zamith, os blogues são, acima de tudo, a «catarse» dos jornalistas, como diz João Paulo Meneses para explicar o fenómeno de «explosão» de blogues da autoria de profissionais da comunicação social: «O jornalismo é uma profissão castradora, o jornalista não deve, não pode, dar opinião. Dantes, o jornalista dava a sua opinião aos amigos, a beber uma cerveja. Hoje tem um blogue.»
Paula Ramos Nogueira («Diário de Notícias»)
O jornalismo «está num processo de redefinição» e os blogues, como «nova modalidade de expressão», são «uma via através da qual mais gente pode tomar a palavra». Enquanto espaços de opinião e reflexão, os blogues constituem uma espécie de «quinto poder», na «presunção de que o quarto poder foi perdendo capacidade de vigiar os outros poderes».
Esta ideia foi defendida por Manuel Pinto, provedor do «Jornal de Notícias», jornalista, investigador e docente da Universidade do Minho, num colóquio organizado pela Associação Gabinete de Imprensa de Guimarães, subordinado ao tema «O papel dos blogues no jornalismo actual», com a participação de Fernando Zamith (Agência Lusa), João Paulo Meneses (TSF) e Elisabete Barbosa (docente universitária e co-autora do livro «Weblogues - Diário de Bordo».
Quando se discute se os weblogues são jornalismo, as opiniões divergem. Manuel Pinto acha que não, embora os blogues contemplem aquilo que define por «metajornalismo», e se assumam como o formato que «admite a informação, a análise, o comentário e a opinião». Apesar de se constituírem como «a ferramenta ideal para a prática jornalística», segundo Fernando Zamith, os blogues são, acima de tudo, a «catarse» dos jornalistas, como diz João Paulo Meneses para explicar o fenómeno de «explosão» de blogues da autoria de profissionais da comunicação social: «O jornalismo é uma profissão castradora, o jornalista não deve, não pode, dar opinião. Dantes, o jornalista dava a sua opinião aos amigos, a beber uma cerveja. Hoje tem um blogue.»
Paula Ramos Nogueira («Diário de Notícias»)
Wednesday, December 08, 2004
Erros, disparates e impropriedades
Escreve-se cada vez pior na imprensa portuguesa. Nalguns casos, como os exemplificados a seguir (e sem outro critério senão o que calhou tropeçar na leitura de jornais da última semana), com erros, disparates e impropriedades de bradar aos céus. E lá onde eles estiverem, imagino o vociferar que vai entre Fernando Brederode Santos e João Carreira Bom – eles que, quando andaram pelas redacções cá em baixo, ficaram lembrados para sempre pelas suas fúrias homéricas quando se asneirava coisas assim: «(...) Comissões de serviço ilegais, contratações a tempo parcial contra a lei, regimes de avença por justificar, subsídios de risco sem sustentação. São centenas de milhar de euros.» [Notícia a propósito do relatório do Tribunal de Contas sobre a gestão financeira da Alta Autoridade para a Comunicação Social.]
Não é centenas de «milhar», mas de milhares. O numeral cardinal funciona como adjectivo; logo, terá sempre de ir para o plural. Rodrigo de Sá Nogueira (in «Dicionário de Erros e Problemas da Linguagem», Clássica Editora, Lisboa), há mais de meio século, ensinou que é «milhares» e não «milhar»: pela mesma razão que não se diz «comprei centenas de «limão», de «livro», etc., mas sim «centenas de laranjas», «centenas de limões» ou «centenas de livros». Centenas, tal como dezenas ou milhares: também dizemos, e escrevemos, dezenas de homens, centenas de contos, milhares de ovos... Portanto: dezenas/centenas de milhares.
* «O vento era de tal ordem à chegada de Tiblissi que, no desembarque do avião, os jogadores do Sporting tiveram de agarra-se com toda a força aos corrimões da escada.» Aqui não há erro, porque o erro – melhor: o barbarismo –, de tanto dito, até já foi registado pelas gramáticas. Mas sendo o substantivo corrimão formado de mão (correr + mão), alguém minimamente escolarizado escreve ou diz «mões» como sendo o plural de mão?!
* «O PSD corrige o tiro e emenda a mão no que se refere à comunicação ou abusos e torpezas na informação, se saiem caros no governo, poderão ser fatais na oposição, onde se vai parar muito mais desprotegido e com menos recursos mediáticos.» A terceira pessoa do plural do verbo sair é... saem. Tal como caem (e não «caiem»).
* «A juiz Ana Peres chegou acompanhada de dois seguranças.» [Referência num daqueles ululantes directos das tevês sobre a primeira sessão do julgamento do «caso Casa Pia».] Se nalgumas profissões nas quais as mulheres ainda são raras ou de muito recente data – caso das bombeiras ou das capatazas – se percebe a resistência à regra geral do feminino em português, francamente: há quantos anos temos, e escrevemos (vide, até, qualquer dicionário...), juízas, assim como magistradas ou advogadas?!
* «Os dois investigadores [da PJ] suspeitam da imparcialidade da advogada, pelo simples facto de esta partilhar o escritório de advocacia com Ricardo Sá Fernandes, defensor de Carlos Cruz.» Ninguém pode, nem deve, ser suspeito ou acusado de imparcialidade, pois não?!
* No circo montado em frente do Tribunal da Boa Hora, em Lisboa, raros foram os repórteres a pronunciar correctamente a palavra arguido(s). «/Arguído(s)/» para aqui, «/arguído(s)/» para ali... Bem andaram os brasileiros: ao contrário da nossa última reforma ortográfica, mantiveram o trema para a acentuação obrigatória do u em palavras como argüido ou seqüestro (e em todas as formas verbais do verbo seqüestrar). Por alguma razão...
José Mário Costa (jornalista)
Escreve-se cada vez pior na imprensa portuguesa. Nalguns casos, como os exemplificados a seguir (e sem outro critério senão o que calhou tropeçar na leitura de jornais da última semana), com erros, disparates e impropriedades de bradar aos céus. E lá onde eles estiverem, imagino o vociferar que vai entre Fernando Brederode Santos e João Carreira Bom – eles que, quando andaram pelas redacções cá em baixo, ficaram lembrados para sempre pelas suas fúrias homéricas quando se asneirava coisas assim: «(...) Comissões de serviço ilegais, contratações a tempo parcial contra a lei, regimes de avença por justificar, subsídios de risco sem sustentação. São centenas de milhar de euros.» [Notícia a propósito do relatório do Tribunal de Contas sobre a gestão financeira da Alta Autoridade para a Comunicação Social.]
Não é centenas de «milhar», mas de milhares. O numeral cardinal funciona como adjectivo; logo, terá sempre de ir para o plural. Rodrigo de Sá Nogueira (in «Dicionário de Erros e Problemas da Linguagem», Clássica Editora, Lisboa), há mais de meio século, ensinou que é «milhares» e não «milhar»: pela mesma razão que não se diz «comprei centenas de «limão», de «livro», etc., mas sim «centenas de laranjas», «centenas de limões» ou «centenas de livros». Centenas, tal como dezenas ou milhares: também dizemos, e escrevemos, dezenas de homens, centenas de contos, milhares de ovos... Portanto: dezenas/centenas de milhares.
* «O vento era de tal ordem à chegada de Tiblissi que, no desembarque do avião, os jogadores do Sporting tiveram de agarra-se com toda a força aos corrimões da escada.» Aqui não há erro, porque o erro – melhor: o barbarismo –, de tanto dito, até já foi registado pelas gramáticas. Mas sendo o substantivo corrimão formado de mão (correr + mão), alguém minimamente escolarizado escreve ou diz «mões» como sendo o plural de mão?!
* «O PSD corrige o tiro e emenda a mão no que se refere à comunicação ou abusos e torpezas na informação, se saiem caros no governo, poderão ser fatais na oposição, onde se vai parar muito mais desprotegido e com menos recursos mediáticos.» A terceira pessoa do plural do verbo sair é... saem. Tal como caem (e não «caiem»).
* «A juiz Ana Peres chegou acompanhada de dois seguranças.» [Referência num daqueles ululantes directos das tevês sobre a primeira sessão do julgamento do «caso Casa Pia».] Se nalgumas profissões nas quais as mulheres ainda são raras ou de muito recente data – caso das bombeiras ou das capatazas – se percebe a resistência à regra geral do feminino em português, francamente: há quantos anos temos, e escrevemos (vide, até, qualquer dicionário...), juízas, assim como magistradas ou advogadas?!
* «Os dois investigadores [da PJ] suspeitam da imparcialidade da advogada, pelo simples facto de esta partilhar o escritório de advocacia com Ricardo Sá Fernandes, defensor de Carlos Cruz.» Ninguém pode, nem deve, ser suspeito ou acusado de imparcialidade, pois não?!
* No circo montado em frente do Tribunal da Boa Hora, em Lisboa, raros foram os repórteres a pronunciar correctamente a palavra arguido(s). «/Arguído(s)/» para aqui, «/arguído(s)/» para ali... Bem andaram os brasileiros: ao contrário da nossa última reforma ortográfica, mantiveram o trema para a acentuação obrigatória do u em palavras como argüido ou seqüestro (e em todas as formas verbais do verbo seqüestrar). Por alguma razão...
José Mário Costa (jornalista)