Thursday, July 29, 2004
TEMPO DE POESIA
Na primeira noite
Eles aproximam-se
E colhem uma flor
Do nosso jardim
E não dizemos nada.
Na segunda noite,
Já não se escondem:
Pisam as flores
Matam o nosso cão,
E não dizemos nada.
Até que um dia
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a lua e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta
E porque não dissemos nada,
Já não podemos dizer nada.
(Poema de Maiakovski)
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
(Poema de Mário Henrique Leiria)
Na primeira noite
Eles aproximam-se
E colhem uma flor
Do nosso jardim
E não dizemos nada.
Na segunda noite,
Já não se escondem:
Pisam as flores
Matam o nosso cão,
E não dizemos nada.
Até que um dia
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a lua e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta
E porque não dissemos nada,
Já não podemos dizer nada.
(Poema de Maiakovski)
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
(Poema de Mário Henrique Leiria)
Monday, July 26, 2004
CÂNTICO NEGRO
«Vem por aqui» -- dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui!»
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Porque me repetis: «vem por aqui!»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui!»
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-- Sei que não vou por aí!
José Régio
«Vem por aqui» -- dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui!»
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Porque me repetis: «vem por aqui!»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui!»
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-- Sei que não vou por aí!
José Régio
Júlio/Saul Dias
Júlio/Saul Dias. Irmão de José Régio. Viveu no Porto, colaborou em vários jornais, cultivou o desenho, a pintura e a poesia . Há uma relação muito próxima entre a sua produção poética e a sua actividade como artista plástico. Tomei contacto com a sua obra através da MJF, que acaba de publicar o segundo livro («Um destino solar») sobre o autor, na Imprensa Nacional. Vale a pena conhecer a obra deste artista multifacetado.
«Quando se ama o abismo é preciso ter asas», assim explicou Júlio/Saul Dias, através da poesia de Nietzsche, as várias e complementares vertentes da sua obra. «Sonho com um futuro em que a felicidade seja possível. Mas já me disseram que pinto um amor que não existe», acrescentou.
***
Escrever um livro, criar um filho, plantar uma árvore
Escrevi um livro.
Quantos anos a sonhá-lo,
A rascunhá-lo nas mesas dos cafés,
A escrevê-lo nos intervalos do emprego,
A vivê-lo,
A sofrê-lo,
Na província, nas cidades...!
Criei um filho.
Tanta alegria no meu coração!
Só ainda não plantei uma árvore.
O frágil caule como protegê-lo?
Como não deixar que os bichos
Maculem as pequeninas folhas?
E como dialogar com uma árvore-menina?
Agora vai sendo tempo.
Os anos já me pesam.
Amanhã vou plantar uma árvore.
Saul Dias («Essência»)
***
A última fala do palhaço
Deixem-me ser eu
um instante, ao menos...!
Ainda vale a pena!
Deixem-me vir à cena
em primeiro lugar,
a rir ou a chorar
(a mesma coisa afinal...)
Deixem-me, antes que morra,
demolir a masmorra
que eu mesmo construí
com lágrimas e sangue
e, embora exangue,
ser só eu, tal e qual!
Saul Dias
Júlio/Saul Dias. Irmão de José Régio. Viveu no Porto, colaborou em vários jornais, cultivou o desenho, a pintura e a poesia . Há uma relação muito próxima entre a sua produção poética e a sua actividade como artista plástico. Tomei contacto com a sua obra através da MJF, que acaba de publicar o segundo livro («Um destino solar») sobre o autor, na Imprensa Nacional. Vale a pena conhecer a obra deste artista multifacetado.
«Quando se ama o abismo é preciso ter asas», assim explicou Júlio/Saul Dias, através da poesia de Nietzsche, as várias e complementares vertentes da sua obra. «Sonho com um futuro em que a felicidade seja possível. Mas já me disseram que pinto um amor que não existe», acrescentou.
***
Escrever um livro, criar um filho, plantar uma árvore
Escrevi um livro.
Quantos anos a sonhá-lo,
A rascunhá-lo nas mesas dos cafés,
A escrevê-lo nos intervalos do emprego,
A vivê-lo,
A sofrê-lo,
Na província, nas cidades...!
Criei um filho.
Tanta alegria no meu coração!
Só ainda não plantei uma árvore.
O frágil caule como protegê-lo?
Como não deixar que os bichos
Maculem as pequeninas folhas?
E como dialogar com uma árvore-menina?
Agora vai sendo tempo.
Os anos já me pesam.
Amanhã vou plantar uma árvore.
Saul Dias («Essência»)
***
A última fala do palhaço
Deixem-me ser eu
um instante, ao menos...!
Ainda vale a pena!
Deixem-me vir à cena
em primeiro lugar,
a rir ou a chorar
(a mesma coisa afinal...)
Deixem-me, antes que morra,
demolir a masmorra
que eu mesmo construí
com lágrimas e sangue
e, embora exangue,
ser só eu, tal e qual!
Saul Dias
Friday, July 23, 2004
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
(...)
Ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
(...)
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
(Alexandre O’Neill)
CARLOS PAREDES
Carlos Paredes faleceu hoje. Mais que as palavras, importa ouvir o som da sua guitarra libertária. Ainda assim, não resisto a transcrever um poema de Manuel Alegre, dedicado ao «mágico» da guitarra portuguesa:
A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e nos lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.
Asa e navalha. E campo de batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).
Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.
Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.
Carlos Paredes faleceu hoje. Mais que as palavras, importa ouvir o som da sua guitarra libertária. Ainda assim, não resisto a transcrever um poema de Manuel Alegre, dedicado ao «mágico» da guitarra portuguesa:
A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e nos lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.
Asa e navalha. E campo de batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).
Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.
Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.
Wednesday, July 21, 2004
No reino da estupidez
O grande Jorge de Sena escreveu um livro («O Reino da Estupidez») no qual critica ferozmente uma certa ignorância lusitana, do género «não sei e tenho raiva a quem sabe», ainda muito em voga neste «país sucessivamante adiado». Deparam-se-me textos de «eguariço» que me deixam arrepiado. Como é possível um jornal com a tradição de «A BOLA», lido por milhares e milhares de pessoas, publicar mamarrachos como o que a seguir reproduzo?! Isto não se faz ao «king»!
Meus amigos: estamos no reino da estupidez! Repito o que já escrevi num «post» anterior: as gralhas não me chocam – choca-me, isso sim, a ignorância e a falta de rigor vindas de gente que tem a responsabilidade de escrever para o grande público.
Eusébio foi rei no Brasil
Eusébio foi ontem homenageado na Galeria da Fama do Estádio do Maracanã ao colocar os seus pés no cimento, perpetuando a sua fama ao lado de jogadores como Pelé, Zico, Didi, Garrincha, Nílton Santos, entre outros.
De resto, Eusébio foi o primeiro jogador estrangeiro a receber tal honra por parte da Superintendência do Estádio, a que se seguirão nomes como Bekenbauer [Beckenbauer], Bob Charlton ou Maradona.
Eusébio não escondeu a sua emoção e vincou estar a viver um dos momentos mais importantes da sua vida: «O Maracanã é uma autêntica catedral do futebol e aqui disputei diversos jogos. Lembro-me de um Santos-Benfica e de um Brasil-Portugal, na final de uma Mini-Cpa [Minicopa], perante 180 mil pessoas. Ficar aqui perpectuado [perpetuado] junto de Pelé, um irmão e um amigo, e de Garrincha, uma figura maravilhosaq que sempre admirei, ainda me deixa mais honrado. Não tenho palavras, a emoção é indiscritível [indescritível]. Sempre tive um grande carinho pelo Brasil e pelos brasileiros. Em meu nome, dos portugueses, dos benfiquistas e dos africanos, o meu obrigado.»
O grande Jorge de Sena escreveu um livro («O Reino da Estupidez») no qual critica ferozmente uma certa ignorância lusitana, do género «não sei e tenho raiva a quem sabe», ainda muito em voga neste «país sucessivamante adiado». Deparam-se-me textos de «eguariço» que me deixam arrepiado. Como é possível um jornal com a tradição de «A BOLA», lido por milhares e milhares de pessoas, publicar mamarrachos como o que a seguir reproduzo?! Isto não se faz ao «king»!
Meus amigos: estamos no reino da estupidez! Repito o que já escrevi num «post» anterior: as gralhas não me chocam – choca-me, isso sim, a ignorância e a falta de rigor vindas de gente que tem a responsabilidade de escrever para o grande público.
Eusébio foi rei no Brasil
Eusébio foi ontem homenageado na Galeria da Fama do Estádio do Maracanã ao colocar os seus pés no cimento, perpetuando a sua fama ao lado de jogadores como Pelé, Zico, Didi, Garrincha, Nílton Santos, entre outros.
De resto, Eusébio foi o primeiro jogador estrangeiro a receber tal honra por parte da Superintendência do Estádio, a que se seguirão nomes como Bekenbauer [Beckenbauer], Bob Charlton ou Maradona.
Eusébio não escondeu a sua emoção e vincou estar a viver um dos momentos mais importantes da sua vida: «O Maracanã é uma autêntica catedral do futebol e aqui disputei diversos jogos. Lembro-me de um Santos-Benfica e de um Brasil-Portugal, na final de uma Mini-Cpa [Minicopa], perante 180 mil pessoas. Ficar aqui perpectuado [perpetuado] junto de Pelé, um irmão e um amigo, e de Garrincha, uma figura maravilhosaq que sempre admirei, ainda me deixa mais honrado. Não tenho palavras, a emoção é indiscritível [indescritível]. Sempre tive um grande carinho pelo Brasil e pelos brasileiros. Em meu nome, dos portugueses, dos benfiquistas e dos africanos, o meu obrigado.»
Sunday, July 11, 2004
TEMPO DE POESIA
(Poemas de Alexandre O’Neill -- in «Feira Cabisbaixa»)
O CICLISTA
O homem que pedala, que ped’alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas:
tem o por vir na pedaleira.
BELARMINO
Tiveste jeito, como qualquer de nós,
E foste campeão, como qualquer de nós.
Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.
Campeões com jeito
É a nossa vocação, nosso trejeito...
Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
-- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.
Mas do miudame levamos cada soco!
Achas que foi pouco?
Belarmino:
quando ao tapete nos levar
a mofina,
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões com jeito
e amadores da má vida.
(Poemas de Alexandre O’Neill -- in «Feira Cabisbaixa»)
O CICLISTA
O homem que pedala, que ped’alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas:
tem o por vir na pedaleira.
BELARMINO
Tiveste jeito, como qualquer de nós,
E foste campeão, como qualquer de nós.
Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.
Campeões com jeito
É a nossa vocação, nosso trejeito...
Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
-- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.
Mas do miudame levamos cada soco!
Achas que foi pouco?
Belarmino:
quando ao tapete nos levar
a mofina,
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões com jeito
e amadores da má vida.
Saturday, July 10, 2004
«Estas Coisas da Alma»
CAMANÉ. Um dos nomes mais representativos da nova geração de cantores que reconciliou o grande público com o fado. Tem enorme respeito pela tradição: Amália, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo, entre muitos outros, são fadistas que cita com frequência, sem abdicar de percorrer o seu caminho. Não enjeita o passado, mas acrescenta-lhe «mais alguma coisa», porque outros são os tempos. «O fado conta a vida. A vida de há 30 anos era diferente, mas os sentimentos são os mesmos: a tristeza e a alegria existem, as razões é que são outras.» No fundo, Camané construiu «uma canção dentro da mesma canção», deu voz a novos (e antigos) poetas (Aldina Duarte, José Mário Branco, Manuela de Freitas, Amélia Muge...), mas sempre no respeito pela tradição. A guitarra, a viola, o contrabaixo e, naturalmente, a sua voz inconfundível fazem dele «o maior herdeiro dos grandes nomes do fado».
-- Como nasceu em si a paixão pelo fado?
-- Tem a ver com a família. O meu bisavô e os meus avós da parte do meu pai eram fadistas amadores e interiorizei o ambiente do fado. Aos sete anos tive uma gripe, fiquei sozinho em casa durante duas semanas e ouvi todos os discos que lá havia, de forma compulsiva: Amália, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo, Fernando Maurício, Carlos Ramos... Passei a cantar nas colectividades, aos fins-de-semana, até que aos 12 anos convidaram-me para a Grande Noite do Fado, fiquei contente e ganhei. Tinha aprendido a criar as minhas próprias letras, o fado tradicional funcionava como chão musical, construía uma música dentro da própria música. Descobri no fado a minha forma de expressão. Gravei quatro «singles», mas parei aos 14 anos, quando comecei a mudar de voz. Essa aprendizagem ainda hoje se reflecte no meu trabalho. Canto aquilo de que gosto e em que acredito. Adaptei alguma poesia ao fado. Há um saber adquirido em relação ao fado tradicional.
-- A guitarra portuguesa e a viola, a par de bons poemas e da voz, são «ingredientes» suficientes para manter a tradição e a qualidade do fado? No seu caso, acrescentou-lhe o contrabaixo, mas há quem recorra a outro tipo de instrumentos...
-- O contrabaixo sempre existiu. Não sou contra os outros instrumentos, até podem beneficiar e contribuir para a evolução do fado, mas acima de tudo é preciso ser fadista. Boas letras e bons músicos são importantes para qualquer tipo musical.
[«É nas casas que a alma do fado sobressai, esses lugares onde as palavras cantadas em português soam melhor, onde a poesia descansa»]
-- O que significa para si «ser fadista»? As «casas» e os lugares onde se canta o «fado vadio» são importantes para a descoberta de novos talentos?
-- Vamos por partes. Ser fadista é uma característica de canto e expressão que se identifica como fado. Temos de ser verdadeiros. Estou um pouco sozinho nisto, em relação à nova geração, mas cresci no meio do fado. O percurso e a aprendizagem das casas de fado deram-me esta forma de estar, esta característica que me torna diferente de muita gente que veio de fora para dentro. Quanto à segunda questão, as «casas» e o chamado «fado vadio» foram muito importantes para mim, foram a minha escola. Mais tarde descobri outra forma de fazer crescer o meu trabalho: no palco. Actualmente não frequento as casas de fado, mas às vezes estou parado, apetece-me cantar e vou...
-- Passou pela Comuna, onde conheceu e se tornou amigo de José Mário Branco, seu produtor musical. Trabalhou com Filipe La Féria nos espectáculos «Grande Noite», «Maldita Cocaína» e «Cabaret». Fale-me dessas experiências...
-- Na altura cantava no Faia, para um público mais restrito. Aldina Duarte tinha um espectáculo de fados na Comuna, aos domingos à noite, convidou-me, o José Mário Branco assistiu, gostou muito e ficámos amigos, tornando-se meu produtor musical. Interpretou bem a minha forma de estar no fado. Há uma identificação artística muito forte entre nós. Quanto a La Féria, acreditou em mim e deu-me a oportunidade de ser conhecido, pondo-me a cantar fado. Contribuiu muito para o meu crescimento profissional, foi assim que pisei os primeiros palcos, embora eu tenha a noção de que não é o meu tipo de espectáculo. Não sou actor, o meu espaço é no palco, mas sozinho com os músicos.
-- Quer comentar a expressão «triste fado»?
-- Não há «tristes fados»! Um fado é sempre uma coisa muito boa.
Da produção discográfica de Camané, destaco «Uma Noite de Fado» (1995), «Na Linha da Vida», «Estas Coisas da Alma» e «Pelo Dia Dentro». Vale a pena visitar o seu «site» (www.camane.em.pt), com óptimo grafismo e bem estruturado.
Nota -- Publiquei esta entrevista com Camané em «A BOLA on-line». Aqui a reproduzo para os meus fiéis bloguistas e amigos. Um abraço!
CAMANÉ. Um dos nomes mais representativos da nova geração de cantores que reconciliou o grande público com o fado. Tem enorme respeito pela tradição: Amália, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo, entre muitos outros, são fadistas que cita com frequência, sem abdicar de percorrer o seu caminho. Não enjeita o passado, mas acrescenta-lhe «mais alguma coisa», porque outros são os tempos. «O fado conta a vida. A vida de há 30 anos era diferente, mas os sentimentos são os mesmos: a tristeza e a alegria existem, as razões é que são outras.» No fundo, Camané construiu «uma canção dentro da mesma canção», deu voz a novos (e antigos) poetas (Aldina Duarte, José Mário Branco, Manuela de Freitas, Amélia Muge...), mas sempre no respeito pela tradição. A guitarra, a viola, o contrabaixo e, naturalmente, a sua voz inconfundível fazem dele «o maior herdeiro dos grandes nomes do fado».
-- Como nasceu em si a paixão pelo fado?
-- Tem a ver com a família. O meu bisavô e os meus avós da parte do meu pai eram fadistas amadores e interiorizei o ambiente do fado. Aos sete anos tive uma gripe, fiquei sozinho em casa durante duas semanas e ouvi todos os discos que lá havia, de forma compulsiva: Amália, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo, Fernando Maurício, Carlos Ramos... Passei a cantar nas colectividades, aos fins-de-semana, até que aos 12 anos convidaram-me para a Grande Noite do Fado, fiquei contente e ganhei. Tinha aprendido a criar as minhas próprias letras, o fado tradicional funcionava como chão musical, construía uma música dentro da própria música. Descobri no fado a minha forma de expressão. Gravei quatro «singles», mas parei aos 14 anos, quando comecei a mudar de voz. Essa aprendizagem ainda hoje se reflecte no meu trabalho. Canto aquilo de que gosto e em que acredito. Adaptei alguma poesia ao fado. Há um saber adquirido em relação ao fado tradicional.
-- A guitarra portuguesa e a viola, a par de bons poemas e da voz, são «ingredientes» suficientes para manter a tradição e a qualidade do fado? No seu caso, acrescentou-lhe o contrabaixo, mas há quem recorra a outro tipo de instrumentos...
-- O contrabaixo sempre existiu. Não sou contra os outros instrumentos, até podem beneficiar e contribuir para a evolução do fado, mas acima de tudo é preciso ser fadista. Boas letras e bons músicos são importantes para qualquer tipo musical.
[«É nas casas que a alma do fado sobressai, esses lugares onde as palavras cantadas em português soam melhor, onde a poesia descansa»]
-- O que significa para si «ser fadista»? As «casas» e os lugares onde se canta o «fado vadio» são importantes para a descoberta de novos talentos?
-- Vamos por partes. Ser fadista é uma característica de canto e expressão que se identifica como fado. Temos de ser verdadeiros. Estou um pouco sozinho nisto, em relação à nova geração, mas cresci no meio do fado. O percurso e a aprendizagem das casas de fado deram-me esta forma de estar, esta característica que me torna diferente de muita gente que veio de fora para dentro. Quanto à segunda questão, as «casas» e o chamado «fado vadio» foram muito importantes para mim, foram a minha escola. Mais tarde descobri outra forma de fazer crescer o meu trabalho: no palco. Actualmente não frequento as casas de fado, mas às vezes estou parado, apetece-me cantar e vou...
-- Passou pela Comuna, onde conheceu e se tornou amigo de José Mário Branco, seu produtor musical. Trabalhou com Filipe La Féria nos espectáculos «Grande Noite», «Maldita Cocaína» e «Cabaret». Fale-me dessas experiências...
-- Na altura cantava no Faia, para um público mais restrito. Aldina Duarte tinha um espectáculo de fados na Comuna, aos domingos à noite, convidou-me, o José Mário Branco assistiu, gostou muito e ficámos amigos, tornando-se meu produtor musical. Interpretou bem a minha forma de estar no fado. Há uma identificação artística muito forte entre nós. Quanto a La Féria, acreditou em mim e deu-me a oportunidade de ser conhecido, pondo-me a cantar fado. Contribuiu muito para o meu crescimento profissional, foi assim que pisei os primeiros palcos, embora eu tenha a noção de que não é o meu tipo de espectáculo. Não sou actor, o meu espaço é no palco, mas sozinho com os músicos.
-- Quer comentar a expressão «triste fado»?
-- Não há «tristes fados»! Um fado é sempre uma coisa muito boa.
Da produção discográfica de Camané, destaco «Uma Noite de Fado» (1995), «Na Linha da Vida», «Estas Coisas da Alma» e «Pelo Dia Dentro». Vale a pena visitar o seu «site» (www.camane.em.pt), com óptimo grafismo e bem estruturado.
Nota -- Publiquei esta entrevista com Camané em «A BOLA on-line». Aqui a reproduzo para os meus fiéis bloguistas e amigos. Um abraço!
Wednesday, July 07, 2004
O cavalo de Tróia
Não foi provado que a guerra de Tróia alguma vez tenha acontecido, mas uma coisa é certa: ficou imortalizada nesses dois grandes poemas de Homero que dão pelo nome de «Ilíada» e «Odisseia», que ainda hoje alimentam a mitologia ocidental. Os gregos venceram a «guerra» graças ao famoso truque de Ulisses, que ofereceu um cavalo de madeira aos troianos, dentro do qual se escondiam os soldados que abriram as portas da cidade ao restante exército.
No domingo passado, no Estádio da Luz, os gregos venceram a segunda guerra de Tróia. Chegaram a Lisboa aos milhares, comandados por um Ulisses dos tempos modernos que por sinal até é alemão (mestre em estratégia defensiva, segundo rezam as crónicas), Otto Rehhagel de seu nome, ofereceram o «cavalo» aos portugueses e, como quem não quer a coisa, resgataram a belíssima «Helena», para espanto dos lusitanos, que já tinham decretado: «A vitória é certa!»
«Seu» Felipão meteu o «cavalo» no saco e foi arejar com a família que já é muito portuguesinha da silva e até já aderiu à sardinhada. Entrevistas? Nem pensar! Agora, volvidos escassos dias e serenados os ânimos, «seu» Felipão volta a dar sinal de vida (num jornal brasileiro, pois claro!), para desdizer o que antes tinha afirmado:
Antes: «O segundo lugar é o primeiro dos últimos.»
Depois: «O povo português merecia o título. Foi pena não o termos conseguido, mas a condição de vice também é muito respeitada na Europa.»
(Deixem-me ser politicamente incorrecto...)
Não foi provado que a guerra de Tróia alguma vez tenha acontecido, mas uma coisa é certa: ficou imortalizada nesses dois grandes poemas de Homero que dão pelo nome de «Ilíada» e «Odisseia», que ainda hoje alimentam a mitologia ocidental. Os gregos venceram a «guerra» graças ao famoso truque de Ulisses, que ofereceu um cavalo de madeira aos troianos, dentro do qual se escondiam os soldados que abriram as portas da cidade ao restante exército.
No domingo passado, no Estádio da Luz, os gregos venceram a segunda guerra de Tróia. Chegaram a Lisboa aos milhares, comandados por um Ulisses dos tempos modernos que por sinal até é alemão (mestre em estratégia defensiva, segundo rezam as crónicas), Otto Rehhagel de seu nome, ofereceram o «cavalo» aos portugueses e, como quem não quer a coisa, resgataram a belíssima «Helena», para espanto dos lusitanos, que já tinham decretado: «A vitória é certa!»
«Seu» Felipão meteu o «cavalo» no saco e foi arejar com a família que já é muito portuguesinha da silva e até já aderiu à sardinhada. Entrevistas? Nem pensar! Agora, volvidos escassos dias e serenados os ânimos, «seu» Felipão volta a dar sinal de vida (num jornal brasileiro, pois claro!), para desdizer o que antes tinha afirmado:
Antes: «O segundo lugar é o primeiro dos últimos.»
Depois: «O povo português merecia o título. Foi pena não o termos conseguido, mas a condição de vice também é muito respeitada na Europa.»
(Deixem-me ser politicamente incorrecto...)
Friday, July 02, 2004
TEMPOS NOVOS 2
«Se se confirmar o desmentido categórico de Cavaco Silva ao Expresso (que ouvi referido no programa Expresso da Meia Noite) de que teria feito qualquer declaração de apoio a Santana Lopes, estamos perante um segundo exemplo de desinformação ocorrida ontem. Coordenada, organizada e intencional, destinada a obter efeitos políticos imediatos. A reforçar o sentimento de inevitabilidade, a desmoralizar e confundir. Alguém está a trabalhar a informação muito a sério.
Insisto. Está na altura de os jornalistas fazerem aquilo que sempre disseram que fariam quando as suas fontes deliberadamente mentem: denunciar os seus nomes.»
Pacheco Pereira, no «ABRUPTO»
TEMPOS NOVOS
«Como se viu com a forma como foram «relatadas» aos jornalistas a intervenção e o voto de Manuela Ferreira Leite no Conselho Nacional [do PSD], já se percebeu como está a funcionar uma estratégia de informação, ou seja, uma central de desinformação. Coordenada, organizada e intencional, destinada a obter efeitos políticos imediatos. Os jornais foram manipulados para contar mentiras. Manuela Ferreira Leite nem pediu desculpas, nem votou Santana Lopes.
Está na altura de os jornalistas fazerem aquilo que sempre disseram que fariam quando as suas fontes deliberadamente mentem: denunciar os seus nomes.»
Pacheco Pereira, no «ABRUPTO»
«Se se confirmar o desmentido categórico de Cavaco Silva ao Expresso (que ouvi referido no programa Expresso da Meia Noite) de que teria feito qualquer declaração de apoio a Santana Lopes, estamos perante um segundo exemplo de desinformação ocorrida ontem. Coordenada, organizada e intencional, destinada a obter efeitos políticos imediatos. A reforçar o sentimento de inevitabilidade, a desmoralizar e confundir. Alguém está a trabalhar a informação muito a sério.
Insisto. Está na altura de os jornalistas fazerem aquilo que sempre disseram que fariam quando as suas fontes deliberadamente mentem: denunciar os seus nomes.»
Pacheco Pereira, no «ABRUPTO»
TEMPOS NOVOS
«Como se viu com a forma como foram «relatadas» aos jornalistas a intervenção e o voto de Manuela Ferreira Leite no Conselho Nacional [do PSD], já se percebeu como está a funcionar uma estratégia de informação, ou seja, uma central de desinformação. Coordenada, organizada e intencional, destinada a obter efeitos políticos imediatos. Os jornais foram manipulados para contar mentiras. Manuela Ferreira Leite nem pediu desculpas, nem votou Santana Lopes.
Está na altura de os jornalistas fazerem aquilo que sempre disseram que fariam quando as suas fontes deliberadamente mentem: denunciar os seus nomes.»
Pacheco Pereira, no «ABRUPTO»
Defender a estabilidade
«O argumento mais forte contra eleições antecipadas é a necessidade de manter a estabilidade política a todo o custo. Só que a estabilidade, sendo um bem valioso e necessário, não é um valor absoluto que deva sobrepor-se a todos os outros. E nem vale a pena recordar a enorme estabilidade dos regimes totalitários, tanto de direita como de esquerda, para aduzir argumentos que a diminuem no confronto com outros bens e necessidades.
Em democracia, o valor que a estabilidade representa é apenas um entre muitos que os decisores políticos têm de ponderar nas situações de crise como a que vivemos.
Perante a saída de Durão Barroso para a Europa, que provocou a instabilidade extrema – a demissão do primeiro-ministro impõe a queda de todos os ministros e obriga à nomeação de um novo Governo –, pretender que o Presidente da República pense apenas na estabilidade e na observância das regras constitucionais aplicáveis é pedir-lhe que se reduza à condição de notário.»
Fernando Madrinha, no «Expresso»
«O argumento mais forte contra eleições antecipadas é a necessidade de manter a estabilidade política a todo o custo. Só que a estabilidade, sendo um bem valioso e necessário, não é um valor absoluto que deva sobrepor-se a todos os outros. E nem vale a pena recordar a enorme estabilidade dos regimes totalitários, tanto de direita como de esquerda, para aduzir argumentos que a diminuem no confronto com outros bens e necessidades.
Em democracia, o valor que a estabilidade representa é apenas um entre muitos que os decisores políticos têm de ponderar nas situações de crise como a que vivemos.
Perante a saída de Durão Barroso para a Europa, que provocou a instabilidade extrema – a demissão do primeiro-ministro impõe a queda de todos os ministros e obriga à nomeação de um novo Governo –, pretender que o Presidente da República pense apenas na estabilidade e na observância das regras constitucionais aplicáveis é pedir-lhe que se reduza à condição de notário.»
Fernando Madrinha, no «Expresso»
Sophia de Mello Breyner
«A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza.»
(Sophia de Mello Mello Breyner)
Silêncio! Morreu uma poetisa. Sophia, «uma figura maravilhosa da literatura portuguesa», no dizer de outro grande poeta português, Sérgio Godinho. No dia em que também morreu Marlon Brando, uma «força da natureza» na arte de bem representar, curvo-me perante a memória de dois seres «maravilhosos». Sophia de «O Nome das Coisas» e «Fada Oriana»; Marlon Brando de «Um Eléctrico Chamado Desejo». Obrigado!
Poemas de Sophia de Mello Breyner:
PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
AUSÊNCIA
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua
PIRATA
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
«A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza.»
(Sophia de Mello Mello Breyner)
Silêncio! Morreu uma poetisa. Sophia, «uma figura maravilhosa da literatura portuguesa», no dizer de outro grande poeta português, Sérgio Godinho. No dia em que também morreu Marlon Brando, uma «força da natureza» na arte de bem representar, curvo-me perante a memória de dois seres «maravilhosos». Sophia de «O Nome das Coisas» e «Fada Oriana»; Marlon Brando de «Um Eléctrico Chamado Desejo». Obrigado!
Poemas de Sophia de Mello Breyner:
PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
AUSÊNCIA
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua
PIRATA
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.