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Saturday, March 27, 2004

«Morte e Vida Severina»



«Morte e Vida Severina», de João Cabral de Melo Neto Portugal, finalmente em Portugal. A ideia partiu de Toni, realizador brasileiro radicado há alguns anos entre nós. É um longo e belo poema («auto de natal pernambucano») do grande poeta brasileiro, que vai ser levado à cena, muito brevemente, no Teatro Armando Cortez (Casa do Artista), em Lisboa, depois do enorme sucesso nos palcos brasileiros e não só.

Contaram-me que inicialmente o poeta não deu consentimento para que «Morte e Vida Severina» fosse musicado. A razão é simples: o poema, em si, já é de uma musicalidade espantosa, portanto, dispensava «ornamentações». Chico Buarque, admirador da obra poética de Cabral Neto, insistiu e musicou o poema, apresentando o resultado final ao autor. Rendido à música do «Chico», o poeta deu o seu consentimento.

A poesia de Cabral Neto e a música de Chico Buarque, numa encenação de Silnei Siqueira e um elenco de grande qualidade. A não perder! A partir de sábado (dia 3 de Abril), na Casa do Artista, em Lisboa.

PS - Já vi, gostei e aconselho vivamente.



O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
(...)

Friday, March 26, 2004

«(...) Para traz pouco ou nada de positivo e apenas um remate à sua medida que, no entanto, saiu ao lado»

(in A BOLA)

Já lá vai o tempo em que ficava de cabelos em pé quando se me deparavam «calinadas» como aquela que acima reproduzo. Hoje em dia estou muito mais tolerante, depois de perder várias «batalhas» em prol da «higienização» da língua portuguesa. Desta feita foi um amigo (o «quizoide») que me alertou para a pequena «relíquia» publicada nas páginas de a «Bíblia» (?), a pensar, certamente, que conseguia tirar-me o apetite para o jantar... Puro engano! Longe vão os tempos... Não há como uma boa gargalhada!

Junto mais umas quantas «calinadas» ao rol das que já publiquei no primeiro «post» (entre parêntesis a palavra correcta):

Açoreano (açoriano)
Tem acento na mesa da Assembleia Geral (assento)
Um dos que mais se evidenciou (evidenciaram)
Benvindo (bem-vindo)
Deixásse-mos (deixássemos)
Precalço (percalço)
Permissa (premissa
Cabine (cabina)
(Piroetas (piruetas)
Ecram (ecrã)
Rápidamente (rapidamente)
Raúl, Saúl... (Raul, Saul...)
Recriar (recrear: divertir)
Sózinho (sozinho)
Substimar (subestimar)
Super-eficaz (supereficaz)
Caiem (caem)
(...)

Monday, March 22, 2004

JOSÉ BAÇÃO LEAL. As suas poesias foram recolhidas pela mãe, carinhosamente, dos rascunhos que deitava fora. «Sensibilidade nova, exigente e generosa, marcada por uma ânsia radical de verdade», assim falou Urbano Tavares Rodrigues do poeta que morreu em Nampula (Moçambique), durante a guerra colonial.
O seu testamento («Poesias e Cartas»), descoberto num alfarrabista, é uma das minhas «âncoras». Frequentámos os mesmos cafés (Copa, Mexicana, Império...), partilhámos a mesma angústia (guerra colonial) e a mesma esperança (liberdade). Aqui fica uma singela homenagem ao poeta:

ORAÇÃO DE VENCIDO

Já se esqueceram as nuvens
A alegria voltou ao rosto das luzes

Os homens do campo
que poderiam ser meus irmãos
são agora estranhas sombras
formulando gestos

Eu vou descendo os degraus da noite
com o passo marcadamente incerto
dos que não sabem perder

e perderam

Caminho em busca da renúncia
com flechas de vento
nas asas da derrota

Levo na cinza dos meus olhos
toda aquela angústia branca
que viceja na espuma dos meus dedos

Por entre pedras e poemas
bêbado e só
eu vou cantando

a minha oração de vencido

José Bação Leal

Friday, March 19, 2004

Porque «é que»?

Pessoa que muito estimo insurgiu-se contra mim, de espada em riste, pelo facto de lhe ter retirado os équês num textinho que enviou para este «blog». Em primeiro lugar é preciso dizer que este é um espaço onde se pode brincar (mesmo as pessoas de tenra idade...). Para levar as «coisas» demasiado a sério... já nos basta o dia-a-dia. Depois, a pessoa em questão despreza uma regra de oiro que me ensinaram os mais velhos: «aprender sempre».

Vamos aos «équês»...

Não sou linguista nem cultivo o perfeccionismo, embora fique irritado com certas calinadas que ouço e leio por aí. A minha fraca experiência na área da escrita deriva de muitos anos a trabalhar numa revisão e também de alguma curiosidade pela matéria. Orgulho-me, isso sim, de ter lidado com um «mestre» da língua portuguesa: Carlos Pinhão. Ensinou-me que a escrita fica melhor se depurada dos abusos de équês, quês, artigos indefinidos, etc.

Os équês são uma expressão enfática perfeitamente dispensável na escrita, mas também não vem mal ao mundo se a utilizarmos com moderação. Apenas quis mostrar isso. Nada mais!
Porque, por que e porquê

1- Escreve-se porque

a) Quando é conjunção causal: «Não saio, porque está a chover.»

b) Quando é conjunção final. Neste caso é igual a para que, a fim de que, para:
«Manda dous mais sagazes, ensaiados/ Porque notem dos mouros enganosos/ A cidade e poder, e porque vejam/ Os Cristãos, que só tanto ver desejam».
(«Os Lusíadas», II,7)

c) Quando é advérbio interrogativo:
Porque não vens comigo?
Porque faz ele isto?
Nestas orações interrogativas directas, é um advérbio, porque está ligado a um verbo.

Também é advérbio interrogativo nas orações interrogativas indirectas:
- Diz-me lá porque faltaste à aula.
- O pai perguntou-lhe porque não veio.
A palavra porque também é advérbio interrogativo depois do advérbio eis em frases do tipo destas:
- Eis porque havemos de ser tolerantes.
- Eis porque não concordo contigo.

O porque também é advérbio interrogativo em títulos de livros, como por exemplo:
- Porque viemos.
- Porque sou cristão.

2 - Escreve-se por que:

a) Quando por é preposição e que é pronome relativo (isto é, por que = pelo qual, pela qual, pelos quais, pelas quais).

Exemplos:
- Este é o dinheiro por que (pelo qual) vendo a casa.
- A ideia por que (pela qual) luto é a melhor.
- Os 100 contos, por que (pelos quais) vendi o carro, dá-los-ei aos pobres.
- Estão à vista as causas por que (pelas quais) ainda te conservas na minha casa.

b) Quando por é preposição e o que é pronome interrogativo adjunto: (chama-se «adjunto» por vir «junto» a um substantivo, ligado pelo sentido).

Exemplos:
- Por que (= por qual) razão/motivo/causa/pretexto, etc., não vieste ontem?
- Por que (= por quais) livros aprendeste?

c) Quando por é preposição e que é pronome interrogativo:
- Por que esperas? (= por que coisa esperas?)

Ex: Que coisa esperas?

Pergunta:
«Se queres ser homem, por que não estudas?» Nesta frase escreve-se ou não por que?

Resposta:
Escreve-se assim: «Se queres ser homem, porque não estudas?»
A razão é a seguinte: porque é um advérbio interrogativo - uma só palavra.

(Ciberdúvidas, com a devida vénia)

Friday, March 05, 2004

TEMPO DE POESIA
(Dois poemas de António Ramos Rosa)

Não posso adiar o coração

No posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

***

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não alcança os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

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